sexta-feira, 17 de janeiro de 2014
A Geografia do Prazer
A ESTAÇÃO FÉRTIL
Fértil é a estação do ano onde proliferam
as angústias que, como folhas de árvore amarelecidas pelo tempo, descem,
suavemente, em nossas mãos outonais. Também elas - as mãos - vão deixando cair
no esquecimento as memórias dos dias que ainda não antecipavam nada para além
do que, sofridamente, iam desenhando no horizonte áspero e branco do
papel. Também elas, silenciosamente, nos
arrastavam - e arrastam - até esse horizonte onde a espera é sempre igual
ao cansaço das noites passadas entre viagens e vertigens, entre fendas e fugas,
sobre precipícios perdidos à beira de caminhos sem pontes visíveis entre as
margens do delírio e as da imaginação fértil. Assim ficámos - e ficamos -,
permanentemente, à ilharga da madrugada, sem nos atrevermos a escalar outras
dificuldades para além das que os olhos pressentiam - e pressentem - e
as mãos conseguiam - e conseguem - dominar.
Fértil é a noite onde proliferam as sendas
sinuosas dos desencontros que, como rios de fogo, avançam pelas vertentes
áridas da angústia a caminho das várzeas verdes da esperança. Mas que esperança
podemos esperar depois de todas as colheitas terem desaparecido debaixo da lava
incandescente de tanta espera?!
É pelo sossego da noite, antes de as mãos,
cansadas, adormecerem encostadas ao brilho sôfrego dos olhos, que empreendemos
as grandes viagens por entre os espaços vazios
da música e do silêncio. Seguimos a magia das palavras que nos vão acordando
os passos incertos e os significados menos esperados, sempre a caminho da
memória das cores e das coisas. E dos cheiros que, por vezes, arrastam consigo
o saber e sabor do passado.
Fértil é a viagem por entre os silêncios
da música, quando tudo parece ir acabar em breve e sentimos a pressa das mãos
por cima das letras que vão escrevendo as palavras que, inesperadamente, vêm ao
nosso encontro. Mas nem sempre elas conseguem evocar todas as imagens que vivem
agarradas à memória dos aromas vários de uma merenda de trabalhadores por entre
paveias de pasto acabado de cortar, ou agarradas à memória do cheiro ácido e
quente da terra abençoada pela bico de uma charrua, enquanto as leivas
deslizavam pelo aço luzidio da folha, pondo a descoberto os pequenos bolbos da
erva-canária, ou trevo-azedo, que, à noite, antes da
ceia, torrávamos na lareira da infância, junto ao brasido. Por isso
desesperamos. Por isso viajamos, constantemente, entre o ontem e o futuro que
as palavras antecipam a cada esquina dos seus e dos nossos próprios sentidos.
Férteis são todos os sentidos do corpo e
das palavras. Por isso, só ficamos apaziguados quando as mãos conseguem
desenhar, letra a letra, as imagens vivas que arrastam os olhos e a memória
pelos íngremes atalhos do corpo, onde já se pressentem as vertigens de
uma viagem, sem retorno, ao centro da própria noite.
Augusto Mota, texto 89 de «A Geografia do Prazer», 1999
- exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
A Geografia do Prazer
RECEITA
Quando, manhã cedo, o sol de Outono realça
as formas e aviva as cores dos frutos que pendem, vaidosos, da copa nua de um
diospireiro os olhos enchem-se de sabores apetecidos.
Mas é às mãos que damos a honra de provar os tons vários de todos os prazeres
que, ciosos, se escondem para além da polpa ávida e sumarenta de cada dióspiro.
Que universo de sensações habitam tal
fruto quando colhido, com delicadeza, no próprio corpo da árvore!
Quando os ramos já perderam todas as suas
folhas escolhe-se um, bem maduro, quase sorvado, sopesa-se, deixando que a sua
casca fina e lisa adira completamente à nossa mão e aos dedos, de modo a
sentirmos o pulsar de sua polpa deliciosamente doce. Depois, quando o fruto já
faz parte do nosso corpo, ele próprio se solta da árvore e inunda-nos os olhos
de cores e formas variadas: uns são amarelos, outros alaranjados ou roxos; uns
são achatados, outros cónicos ou pontiagudos. Preferimos os que enchem bem a
mão e têm a cor laranja de um sereno pôr-do-sol de Inverno sobre o mar,
daqueles que costumam anunciar as fortes
geadas de Janeiro. Talvez por isso o doce destas bagas enormes tenha um sabor
tão frio, parecendo negar o calor da sua sensual aparência.
E a boca? A boca, aguada, fica-se pela
aventura da imaginação a caminho de todos os desejos. Vive, sôfrega, entre o
que vê e o que sente. E, por vezes, sente mais do que deseja. Por isso a
deixamos calada, enquanto as mãos caminham, impacientes, pelos frutos dentro,
rumo ao horizonte dos olhos.
Aí descansamos o cansaço da manhã no
regaço da colheita.
Augusto Mota, texto 88 de «A Geografia do Prazer», 1999
sábado, 11 de janeiro de 2014
A Geografia do Prazer
A caminho do Outono, apressadas, correm as
árvores pela paisagem fora. Já são de ouro as cores das folhas que se espalham
pelas mãos, à beira de todos os caminhos do corpo, quando o vento anuncia chuva
e refresca os olhos cansados de tanta viagem pelo deserto das emoções.
Vamos, em breve, iniciar um outro ciclo de
encontros desencontrados, como se o Outono tivesse que ser a estação de partida
e de chegada de todas as viagens empreendidas ao sabor da memória e dos dias
que a justificam.
Vamos, por certo, atravessar os extensos
campos de arroz quando os homens e as máquinas já se
preparam para a ceifa das espigas maduras e alguns bandos de garças boieiras ensaiam voos de migração rumo ao sul, rumo à Primavera de todas as
aves.
Vamos, ainda, deixar os olhos recordar o
verde do vale quando a luz rasante da manhã enobrecia os tons vários dos
arrozais, ou quando as cores do poente pareciam antecipar-lhes a maturação. E o
Mondego, de permeio, sempre a dividir a jornada entre a ida e a volta, como se
ter que atravessar uma ponte fosse a mais correcta desculpa para tudo o que os
olhos desejam: habitar, por exemplo, as ruas e os largos daquela aldeia do
poeta Afonso Duarte, que a memória ainda vê rodeada de água por todos os lados,
qual ilha perdida na
bruma dos campos
alagados pelas águas
férteis de um Inverno que o rio deixou sair de suas
margens. De longe, através das janelas
de uma velha carruagem de
terceira classe, vemos ainda, nítidas, as casas reflectidas no vasto espelho da
manhã, só quebrado aqui e ali pelos ramos angustiados das árvores que tentam
sobreviver a tal tormento, enquanto o comboio se afasta, ronceiro, contornando
os campos semeados de água e desespero.
Vamos, pois, ter esperança nas viagens que
havemos de fazer pelas cores adentro que as árvores, propositadamente, foram
abandonando em nossas mãos. E não deixaremos que tal esperança desapareça nas
águas quando elas baixarem e quase só alimentarem as valas de enxugo que vão
riscar a paisagem como esteiras de luz, anunciando, assim, o fim de todos os
invernos. Começam, então, os primeiros amanhos dos campos, com os animais e as
máquinas a lavrarem a terra e a água onde crescerão as espigas que iluminam o
nosso contentamento de hoje.
Vamos, sobretudo, fazer o elogio da
lavoura que permite ao corpo o sustento das mãos, espalhando, como adubo
natural, as boas recordações de ontem sobre todos os campos agora já arados,
para que as espigas cresçam mais depressa e o grão seja mais suculento.
Assim, a boca agradecerá a festa e o esforço.
Augusto Mota, texto 87 de «A Geografia do Prazer», 1999
A Geografia do Prazer
ESTÁTICO ÊXTASE
Saborear o perfume de uma
líchia é como deixar as mãos navegar à sombra das
pétalas de todas as rosas que já enfeitaram a esperança dos dias, quando as
estações do ano se contavam pela germinação das sementes e pelos frutos que,
ansiosamente, guardávamos nos olhos. Mas descascar minuciosamente a casca
coriácea de uma líchia, sem ferir a sua polpa sumarenta, é como abandonar a
boca ao prazer de todos os frutos exóticos que se escondem, ávidos, atrás das
finas roupagens da memória.
A noite é pródiga em tal caminhar pelos
saborosos segredos da botânica, mesmo quando a azáfama dos dias nos afasta do
mercado de todas as secretas e sensatas sensações. Assim penamos, extáticos,
entre as gratas recordações das mãos e o sabor daquela memória que guardamos
tão ciosamente como se fosse a secreta receita de um sofisticado licor. Por
isso a boca antecipa o que os olhos, gulosos, já não conseguem disfarçar ao ver
chegar de longe, pé ante pé, os sábios requintes da madrugada. Neles
descansamos o corpo exausto. Neles adivinhamos a repetição dos dias. E neles
semeamos, a esmo, erva-cabecinha, ou perpétua-das-areias, para que as suas flores animem, com um aroma de culinária
exótica, o que ainda resta do sabor das tardes quentes, ou para, com elas bem
secas, enchermos as almofadas que nos amparam o sono dorido e os sonhos
vigilantes.
É estático este êxtase que adormece o
silêncio e a noite, como se a Glória de uma missa-cantilena acabasse, agora mesmo,
de percorrer a nave de uma catedral gótica
e deixasse as mãos perdidas ante a imponência das colunas e a hesitação
dos olhos que, temerosos, vagueiam pelo transepto em busca do infinito de nós.
Augusto Mota, texto 86 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória
A Geografia do Prazer
SAXOFÍNIA
Os sons de um saxofone são quentes e
dolentes como as noites de Verão nos subúrbios das grandes cidades, num filme a
preto e branco. Mesmo que ouçamos Haendel, Bach ou Piazzola, são as escadas exteriores de ferro dos bairros degradados que ilustram os lamentos,
os gritos e os ritos que nos chegam de um submundo encarcerado em territórios
escurecidos pelas violentas batalhas da sobrevivência.
Sobrevive-se, assim, pelos sons que,
também eles, lutam contra a tristeza que ainda não chegou às mãos, nem à boca
que se alimenta, vaidosa, do diálogo que os ritmos vários vão alongando pelas
ruas da noite, até chegarem ao rio, onde se refrescam à superfície de todas as
marés, quando elas começam a esconder o
lodo das docas e a tocar diferentes melodias no casco ferrugento de algum navio
prestes a zarpar.
São longas as viagens que fazemos ao som
de um quarteto de saxofones: é como se
embarcássemos, clandestinamente, num velho cargueiro, com bandeira de
conveniência, a caminho dos mares do sul, onde o bom agoiro de um albatroz nos acompanha sempre até a uma ilha perdida entre a memória e
o presente. É uma ilha sem subúrbios de grandes cidades, nem lodo no cais da
esperança, mas onde é possível ouvir, no calor das noites tropicais, Indiana
Tones, de Eurico Carrapatoso, ou Sud-America, de Lino
Florenzo.
Hoje a música das palavras é outra e
dilui-se na aventura dos tons e dos sons a preto e branco, em fuga permanente
pelas escadas de serviço dos prédios onde habitam as mãos e o calor da
noite.
Augusto Mota, texto 85 de «A Geografia do Prazer», 1999
A Geografia do Prazer
UVAS-DO-MONTE
O Sol, como um bolo, parte-se e
reparte-se pelos convivas de um doméstico festim de palavras. A quem daremos a
melhor parte? Às mãos, por certo, pois são elas que partem e repartem a exacta
porção de luz dourada que inunda os olhos, enquanto o ló, como fina espuma dos
dias, escorre por entre os dedos e invade os braços, a caminho de todas as
memórias do corpo.
Secreta vigilância esta que domina os
dias, como quem espera pelo desespero! Que outras palavras avançaremos para
delimitar a razão de tão parco existir?
As palavras, como os bolos, estão
recheadas de memórias e de sabores que usamos a esmo nestas receitas culinárias
muito pessoais, pois não respeitamos nem pesos, nem medidas. Tudo é muito bem
batido em tacho de cobre, com colher de madeira, para depois ir ao forno, de
onde, por vezes, sai ainda bem quente para servir, de imediato, como sobremesa
no banquete das palavras. Estas, mergulhadas na infância dos dias que passámos
a esquecê-las, impõem-se-nos como uma gulosa fatia de pão-de-ló recheado de
mirtilos e, assim, é difícil não as usar em nosso
próprio proveito.
Elas, as palavras, percorrem a nossa
paisagem interior de norte a sul, de leste a oeste, para contentamento dos
pontos cardeais da nossa imaginação, que navega sempre à bolina, até ancorar
numa baía de águas claras e baixas onde possamos refrescar as mãos e os olhos.
E só depois, satisfeitos e mais rejuvenescidos, poderemos voltar a adormecer
sobre as gratas recordações desta doce culinária do sentido íntimo das
palavras.
As palavras escritas são, a certas horas, o único alimento para as mãos
que gostariam bem mais de estar a saborear o apelo irrecusável de um punhado de
violáceas e sumarentas uvas-do-monte, ou mirtilos.
Augusto Mota, texto 84 de «A Gegrafia do Prazer», 1999
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