MÍTICA CAVALGADA
Hoje a cidade anoiteceu envolta em névoa,
como se o rio transportasse, desde as fontes que o alimentam, uma outra e nova
dimensão para as coisas e para as pessoas que actuam para lá do ténue pano de
boca, onde os actores continuam a cumprir o seu
papel numa extenuante récita diária. As luzes multiplicam-se, difusas, em
miríades de minúsculas gotas de água e os sons desprendem-se, abafados, do
trânsito que se escoa para os arredores. As lojas fecham as portas e as ruas
parecem ter um só sentido: todas se dirigem para casa.
A cidade, agora silenciosa, transforma-se,
subitamente, nos arredores de si mesma, enquanto montes e fontes se povoam de
sonhos e pela alcáçova do castelo
esvoaça a sorrateira coruja-das-torres e o veloz e rasante
morcego-anão. Senhoriais, os mastins
arremetem contra a noite, imaginando faunos a correr pelos bosques de ulmeiros ao som de um
prelúdio de Debussy. Eles, os mastins, são os guardas da noite e da névoa.
Serão, também, os guardas da madrugada.
Que encantamento é este que recupera as
cavalgadas pelas paisagens da História? Teremos de subir à Torre de Menagem e, de lá de cima, lançarmos o sonho
sobre a noite imensa, fazendo-o esvoaçar três vezes à volta da cidade
adormecida. Assim se quebrará o mau agoiro. E, assim, viajaremos no tempo, para
norte, até aos Campos de Ulmar e poisaremos, de mansinho, no Porto da
Ruivaqueira para ir, rio abaixo, até à foz. Passaremos por muitos outros
portos, sempre guiados por um vistoso e irrequieto guarda-rios. Passaremos pelo Porto da Bóca, pelo de Monte Real, e da Caravela,
e da Passagem, e da Galeota, até o sonho e o rio encontrarem as águas da
maré-cheia. Aí lançaremos âncora à espera que a corrente da vazante nos
arraste, sem esforço, pelo mar dentro, rumo à realidade.
Entretanto é manhã. O sol acarinha os
últimos vestígios de névoa e a cidade afasta-se dos arredores. As ruas voltam a
ter dois sentidos.
Augusto Mota, texto 92 de «A Geografia do Prazer», 1999
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