quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A Geografia do Prazer




MÍTICA CAVALGADA
 
Hoje a cidade anoiteceu envolta em névoa, como se o rio transportasse, desde as fontes que o alimentam, uma outra e nova dimensão para as coisas e para as pessoas que actuam para lá do ténue pano de boca, onde os actores continuam a cumprir o seu papel numa extenuante récita diária. As luzes multiplicam-se, difusas, em miríades de minúsculas gotas de água e os sons desprendem-se, abafados, do trânsito que se escoa para os arredores. As lojas fecham as portas e as ruas parecem ter um só sentido: todas se dirigem para casa.

A cidade, agora silenciosa, transforma-se, subitamente, nos arredores de si mesma, enquanto montes e fontes se povoam de sonhos e pela alcáçova do  castelo esvoaça a sorrateira coruja-das-torres e o veloz e rasante morcego-anão. Senhoriais, os mastins arremetem contra a noite, imaginando faunos a correr pelos bosques de ulmeiros ao som de um prelúdio de Debussy. Eles, os mastins, são os guardas da noite e da névoa. Serão, também, os guardas da madrugada.

Que encantamento é este que recupera as cavalgadas pelas paisagens da História? Teremos de subir à Torre de Menagem e, de lá de cima, lançarmos o sonho sobre a noite imensa, fazendo-o esvoaçar três vezes à volta da cidade adormecida. Assim se quebrará o mau agoiro. E, assim, viajaremos no tempo, para norte, até aos Campos de Ulmar e poisaremos, de mansinho, no Porto da Ruivaqueira para ir, rio abaixo, até à foz. Passaremos por muitos outros portos, sempre guiados por um vistoso e irrequieto guarda-rios. Passaremos pelo Porto da Bóca, pelo de Monte Real, e da Caravela, e da Passagem, e da Galeota, até o sonho e o rio encontrarem as águas da maré-cheia. Aí lançaremos âncora à espera que a corrente da vazante nos arraste, sem esforço, pelo mar dentro, rumo à realidade.

Entretanto é manhã. O sol acarinha os últimos vestígios de névoa e a cidade afasta-se dos arredores. As ruas voltam a ter dois sentidos.


Augusto Mota, texto 92 de «A Geografia do Prazer», 1999

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