quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A Geografia do Prazer




TERCEIRA CRUZADA


Sobrevoando as dunas deste deserto da alma chegam, de longe, os lamentos dos guerreiros feridos no assalto da véspera. E este tempo chuvoso parece abrir ainda mais as feridas que rasgam os corpos de lés a lés, como se estes golpes profundos fossem a fronteira visível que os olhos terão de ultrapassar a caminho de um outro país.

Mas como emigrar assim ferido, mal arrastando o corpo pelo campo de batalha? E como socorrer as lágrimas que se diluem, vagarosas, nos rios de tanto descontentamento? E que mar, ou que maré, irá trazer-nos de volta a cidade de tantos contentamentos?



Sulcam as ondas do tempo os grandes veleiros do passado. Mas é melodia nova o vento que lhes enfuna as velas e cresta a pele rija da marinhagem. Vamos, mais uma vez, a caminho do sul, agora contornando a costa árida deste deserto que acaba no mar, mesmo junto a uma enseada luminosa onde queremos ancorar a cabeça esgotada de tanto peregrinar. E assim fazemos.

O cansaço arrasta-nos mais para o sonho do que para o sono. E nele avistamos a terra prometida, mas não libertada. E com ele transformamos os veleiros em máquinas de guerra que avançam deserto dentro, sempre com o vento de feição. Pelo caminho vamos deixando padrões que marquem os nossos achamentos e facilitem o regresso no meio de tanta miragem. Ondas de areia avançam alterosas sobre as dunas e alguns veleiros naufragam no meio da tempestade. Outros rumam à estrela da tarde para, aí, em segurança, se reverem as cartas do universo e, depois, se empreender a conquista definitiva e decidida da cidade.

Nem Vénus, nem outra qualquer estrela da tarde ajudou muito neste sonho. Os mapas do céu deviam estar confusos e o sonho fez-se sono e tudo acabou como tinha começado. Com os lamentos dos guerreiros feridos no assalto da véspera a chegarem, de longe, até  nós, depois de sobrevoarem as dunas deste deserto da alma. 


 Augusto Mota, texto 97 de «A Geografia do Prazer», 1999


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