quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A Geografia do Prazer




SÚBITA MADRUGADA


Súbita é a madrugada que desagua nos olhos da esperança. Súbita é a esperança que viaja pelas mãos dentro, a caminho das paisagens adormecidas à sombra da noite, quando o sonho desperta o corpo para os grandes percursos de uma memória angustiada pela ausência dos dias vividos entre o mar e a manhã. Assim, que esperança navega agora a caminho dos objectos que os olhos vão criando e querendo?

Ao sabor da corrente correm os dedos pelo corpo da madrugada, enquanto os olhos vigiam o ténue vértice de luz que vai abrindo as portas e os postigos de um novo dia. É então que os olhos, silenciosos, tacteiam os odores da manhã, mesmo que o mar esteja longe das mãos que, ansiosas, colhem, gota a gota, o orvalho que a noite poisou nos ramos ternos e tenros da madrugada. É a sagração do silêncio o que os gestos desenham no areal ausente de uma beira-mar sem marés, mas onde as gotas de orvalho rebentam como ondas de desejo espraiando-se na palma das mãos, ou escorrendo pelos braços abaixo, até inundarem o corpo todo.

Que gestos são estes, afinal, que navegam tão solitários a caminho do nada? São, simultaneamente, desânimo e cansaço. Desânimo porque o nada parece habitar as mãos ausentes e o tempo presente. Cansaço porque o tudo que habita a memória se escoa, permanentemente, por entre os dias e os dedos.

Vã glória esta a de saudar o corpo reclinado da madrugada, quando é a noite que se atravessa, traiçoeira, entre os gestos e a distância das palavras!  
 
Augusto Mota, texto 90 de «A Geografia do Prazer», 1999

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