RECONQUISTA
Cansados do silêncio da véspera acampámos
desejos e recordações às portas da cidade. Como cruzados à espera da
reconquista, descansámos o corpo junto ao fogo do arraial e sagrámos as mãos no
calor das chamas que iluminavam a noite e projectavam na muralha mais exterior
sombras agigantadas de lanças em riste e maças-de-armas volteando agressivas,
como que a treinar a destreza para o assalto final.
Entretanto o silêncio caiu sobre o
acampamento como se fosse uma melodia vinda de longe para adormecer o sonho,
enquanto as chamas iam consumindo as últimas achas deitadas para a fogueira.
Por fim só o tom quente do brasido ficou noite fora a envolver os corpos
exaustos dos guerreiros.
Que muralha é esta em volta da cidade?
Umas vezes encostamos-lhe as mãos como se orássemos lamentos e recordações!
Outras cercamo-la de exércitos e emoções! É como se os sentidos buscassem o
atalho justo que os levasse à rota das grandes cruzadas, ou àquele mítico oásis
para onde se dirigem todas as caravanas que atravessam o deserto do tempo. Para
aí voltarem a descansar à sombra das miragens e das horas que enchem as mãos de
orvalho e de tâmaras frescas.
O frio da
madrugada acordou o exército e povoou a paisagem de vultos ainda
estremunhados. Um galo cantou três vezes sobre as ameias da muralha e a grande
ponte levadiça começou a descer lentamente sobre o fosso das palavras.
A cidade rendeu-se a meio da manhã.
Augusto Mota, texto 95 de «A Geografia do Prazer», 1999
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