quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A Geografia do Prazer




RECONQUISTA

Cansados do silêncio da véspera acampámos desejos e recordações às portas da cidade. Como cruzados à espera da reconquista, descansámos o corpo junto ao fogo do arraial e sagrámos as mãos no calor das chamas que iluminavam a noite e projectavam na muralha mais exterior sombras agigantadas de lanças em riste e maças-de-armas volteando agressivas, como que a treinar a destreza para o assalto final.

Entretanto o silêncio caiu sobre o acampamento como se fosse uma melodia vinda de longe para adormecer o sonho, enquanto as chamas iam consumindo as últimas achas deitadas para a fogueira. Por fim só o tom quente do brasido ficou noite fora a envolver os corpos exaustos dos guerreiros.

Que muralha é esta em volta da cidade? Umas vezes encostamos-lhe as mãos como se orássemos lamentos e recordações! Outras cercamo-la de exércitos e emoções! É como se os sentidos buscassem o atalho justo que os levasse à rota das grandes cruzadas, ou àquele mítico oásis para onde se dirigem todas as caravanas que atravessam o deserto do tempo. Para aí voltarem a descansar à sombra das miragens e das horas que enchem as mãos de orvalho e de tâmaras frescas.

O frio da  madrugada acordou o exército e povoou a paisagem de vultos ainda estremunhados. Um galo cantou três vezes sobre as ameias da muralha e a grande ponte levadiça começou a descer lentamente sobre o fosso das palavras.

A cidade rendeu-se a meio da manhã. 


Augusto Mota, texto 95 de «A Geografia do Prazer», 1999

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