SEGUNDA CRUZADA
A cidade, como um corpo exangue,
debruça-se a custo sobre os desejos da alma e parece não vibrar à aproximação
do exército. Sitiados, os gestos perdem-se pelas ruas desertas e as mãos,
trémulas, percorrem a distância que vai de um medo a outro medo. Só os olhos
estão atentos. E neles brilha o calor das fogueiras junto das tardes escuras e
chuvosas de Inverno, quando o solstício anuncia o fim de mais um ciclo à volta
das nossas próprias recordações.
Que batalhas injustas são estas, passadas
entre a ciência e o devaneio?
Assim, quantas vitórias mais conseguiremos satisfazer, antes de a contagem dos anos se iniciar por dois?
A boca cansa-se de tanto espanto e as
mãos, essas, não sabem se devem correr pela paisagem além, se devem extasiar-se
na contemplação da natureza que rodeia a própria cidade, agora que os ventos
agrestes sacudiram os ramos frágeis dos araçás e os seus
frutos exóticos pontilham de vermelho os secretos caminhos do parque, enquanto
os kiwis atapetam de folhas castanhas
encarquilhadas as lajes dos terraços em frente da alcáçova. E por esses
caminhos nos perdemos, entre a classificação científica de tais frutos e o
sabor levemente ácido da sua polpa.
Assim, quantas vitórias mais conseguiremos satisfazer, antes de a contagem dos anos se iniciar por dois?
Augusto Mota, texto 96 de «A GEografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória
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