sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A Geografia do Prazer

 
 

NO CAIS DO TEMPO



Descemos ao Campo sob o calor abafado do meio da tarde, quando o Sol ainda ia alto e o excesso de luz  anulava  o recorte  das árvores na paisagem. Pelos caminhos da Bóca, procurámos as espécies botânicas que pudessem, mais tarde, enfeitar os olhos naqueles momentos em que  todos os horizontes parecem fechar-se à nossa volta, como se o rio da vida fizesse um círculo e quisesse regressar às fontes.

Cedo descobrimos as espécies que melhor iriam resistir ao tempo e às intempéries da alma: bordando um terreno em pousio, tufos de alho-porro bravo com as suas flores globulares serviam de contraponto a um maciço de tabúa-larga, ou foguetes, que, orgulhosos da sua verticalidade, emergiam das águas estagnadas de uma vala de enxugo. Ali mesmo estimulámos as mãos com o odor forte de um ramo de alhos silvestres para, logo depois, exercitar um equilíbrio cauteloso ao colher alguns foguetes sem arriscar um banho inoportuno. E tudo isto trouxe à memória de hoje os campos alagados do passado, quando se usavam, depois de secas, as folhas estreitas e compridas da tabúa-larga para encher  colchões - a chamada palha-carga - e os pêlos  das  suas densas espigas cilíndricas para encher almofadas. Era a natureza a incitar à sua própria reciclagem!

Aviados e ataviados com os frescos odores das plantas acabadas de cortar prosseguimos, agora rumo ao sul, sempre pela mota do rio, admirando lá de cima os variados tons de castanho das terras que foram sendo lavradas ao longo da semana, como se a paleta de um pintor já tivesse esgotado todas as outras cores. O Sol, entretanto a caminho do fim da tarde, começava a  realçar o recorte suave das árvores na luz serena da paisagem, dando aos longos sulcos paralelos feitos na terra pela maquinaria agrícola o aspecto de texturas dinâmicas, cujo movimento abrandava ou acelerava consoante corriam ao nosso lado ou perpendiculares ao nosso trajecto.

 
Ao longe, a duas léguas de distância, já se destacava, nítido, o castelo de Leiria a elevar-se por entre o casario da cidade nova. E de lá, como caminheiro silencioso e dolente, vinha andando o Lis, permanentemente a resguardar-se de tanto calor à sombra do denso arvoredo que lhe escondia as águas.

Para trás ficou o rio e o Campo. Atravessámos a linha férrea como se fosse uma fronteira para outra realidade. Depois, no cais do tempo, aguardámos ansiosos a chegada de um comboio expresso. Com o atraso de uma eternidade lá seguimos a caminho de nós mesmos. 


Augusto Mota, texto 102 de «A Geografia do Prazer», 2000

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