NO CAIS DO TEMPO
Descemos ao Campo sob o calor abafado do
meio da tarde, quando o Sol ainda ia alto e o excesso de luz anulava
o recorte das árvores na paisagem. Pelos caminhos da Bóca, procurámos as
espécies botânicas que pudessem, mais tarde, enfeitar os olhos naqueles
momentos em que todos os horizontes
parecem fechar-se à nossa volta, como se o rio da vida fizesse um círculo e
quisesse regressar às fontes.
Cedo descobrimos as espécies
que melhor iriam resistir ao tempo e às intempéries da alma: bordando um
terreno em pousio, tufos de alho-porro bravo com
as suas flores globulares serviam de contraponto a um maciço de tabúa-larga, ou
foguetes, que, orgulhosos da sua verticalidade,
emergiam das águas estagnadas de uma vala de enxugo. Ali mesmo estimulámos as
mãos com o odor forte de um ramo de alhos silvestres para, logo depois,
exercitar um equilíbrio cauteloso ao colher alguns foguetes sem arriscar um
banho inoportuno. E tudo isto trouxe à memória de hoje os campos alagados do
passado, quando se usavam, depois de secas, as folhas estreitas e compridas da
tabúa-larga para encher colchões - a chamada palha-carga - e os pêlos
das suas densas espigas cilíndricas para encher almofadas.
Era a natureza a incitar à sua própria reciclagem!
Ao longe, a duas léguas de distância, já
se destacava, nítido, o castelo de Leiria a elevar-se por entre o casario da cidade nova.
E de lá, como caminheiro silencioso e dolente, vinha andando o Lis,
permanentemente a resguardar-se de tanto calor à sombra do denso arvoredo que
lhe escondia as águas.
Para trás ficou o rio e o Campo.
Atravessámos a linha férrea como se fosse uma fronteira para outra realidade.
Depois, no cais do tempo, aguardámos ansiosos a chegada de um comboio expresso.
Com o atraso de uma eternidade lá seguimos a caminho de nós mesmos.
Augusto Mota, texto 102 de «A Geografia do Prazer», 2000
Sem comentários:
Enviar um comentário