quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Textos transversais

 
 


A Geografia do Prazer




MIOSÓTIS


Como um anjo persa descemos do trono para semear, como penitência, miosótis pelos campos alagados dos territórios da ausência e do sonho. Assim não vamos esquecer o trajecto dos olhos a caminho de umas mãos agora vazias dos frutos da véspera. Vamos, pois, esperar pela estação própria, quando na terra húmida germinar uma delicada renda vegetal para, então, bordar uma coroa de singelas flores azuis nas mãos frescas da madrugada e, com elas assim enfeitadas, subir a grande escadaria que antecede o arco-íris de todas as sensações. De lá de cima espalharemos aos quatro ventos sementes de bonina que também hão-de germinar em abundância por montes e vales, assim perpetuando a memória dos dias claros.
 
E pelos bosques do arco-íris descansaremos os sentidos ao longo de veredas orladas de pervinca, enquanto aguardamos o desabrochar do azul violáceo de suas flores. Com elas faremos um filtro raro que acautele a distância do tempo e traga de volta o feitiço das noites quentes, quando as vozes chegam de longe, de muito longe, de tão longe que apenas adivinhamos o verdadeiro rosto das palavras, embora o saibamos coroado de miosótis e de boninas.
 
E pelos lagos que animam a frescura destes bosques havemos de procurar o  nenúfar e o golfão-amarelo para com  os seus pedúnculos e flores, pacientemente, fazer os colares honoríficos que irão distinguir os bons serviços prestados por nós mesmos, em nosso próprio proveito.

Assim frutifiquem todas as sementes que lançámos aos ventos do sonho!
 
 
Augusto Mota, texto 77 de «A Geografia do Prazer», 1999
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória

 

Textos transversais

 
 


A Geografia do Prazer




ROTAS MIGRATÓRIAS
 
 
Estar longe é estar perto das palavras que tentam adivinhar os caminhos que, todos os dias, vamos percorrer em direcção ao Sul, lá onde o calor das mãos não chega para aquecer o rosto que adivinhamos arrefecido pela aragem da distância. Estar longe é estar perto das emoções recordadas e vividas pelas esquinas das ruas que percorrem a cidade transversalmente, a caminho do castelo onde habitam as memórias do corpo. Estar longe é, ainda, estar perto do que os olhos vão, secretamente, sonhando para dentro, muito para dentro, cada vez mais para dentro, até  que o sono nos atraiçoe e faça o corpo atravessar, de novo, as paisagens desertas do passado.
 
O longe e o perto são relações de espaço que o tempo e a memória anulam a nosso favor. Relações vividas segundo um novo sistema métrico, que começa e acaba nos limites do nosso próprio corpo, onde, qual fortaleza avançada, se criam e aperfeiçoam singulares estratégias defensivas. Por isso viajamos tanto ao encontro do nada e do tudo! E as mãos e os olhos até já pressentem o significado de cada palavra que aparece debaixo dos pés, quando, manhã cedo, deixamos o corpo passear, solitário, à beira-mar. Ou quando, em letras enormes, desenhamos na areia da vazante o nosso secreto pedido de socorro, à espera que alguma ave migradora nos veja lá de cima, abandone o bando e nos leve a saudade mais para Sul, para onde voam a rola e a garça-real, se os ventos dominantes favorecerem as suas rotas.

Sabemos que o Outono vem longe, mas devemos estar preparados para, ao primeiro sinal, também levantar voo e deixar as mãos seguir a rota migratória do sonho que inunda os olhos. Sonho e saudade são palavras aladas em viagem para  Sul. Aí estarão até que a natureza as chame de novo a habitar as fontes e os montes, quando a água já correr límpida debaixo da velha nogueira e o orvalho da manhã cintilar nas alvas flores do pilriteiro e nas folhas aromáticas da tomilhinha que  atapeta as colinas viradas a poente.

Ajudados pelas palavras, voamos agora ao encontro do Sul, levados pelo sonho, mas deixámos para trás a saudade, que ainda há-de alimentar voos mais difíceis, rumo ao Norte.
 
 
Augusto Mota, texto 76 de «A Geografia do Prazer», 1999

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Textos transversais

 
 


A Geografia do Prazer

 

 
 
O BARDO
 
 
Vinte vezes ouvimos o bardo lamentar os desencontros do amor. Vinte vezes vimos Ullin dedilhar a harpa a favor de Alpin, que já habitava o reino dos mortos, enquanto Minona, irmã de Morar, ao ouvir os acordes de Ullin,  se esconde atrás de uma nuvem, para exercitar o seu canto de lamentações.
 
Que murmúrios se escondem nas poucas sílabas lamentadas ao som da harpa de Ullin? Entristecem tais sons dedilhados ao arrepio da corrente deste rio e das vagas deste mar que tudo submerge, quando batido pelos ventos do Outono. E se as folhas dos ulmeiros já rodopiam pelos campos, é o sinal esperado para desferir, enfunando as velas ao encontro das vozes que, sem cessar, choram Arindal, filho de Armin.
 
Que melodia é esta que lamenta os desencontros do amor? Vinte vezes a ouvimos e vinte vezes a repetimos, enquanto os heróis de Ossian continuavam os combates pela noite dentro e pela madrugada fora, até as árvores projectarem no chão sombras  temerosas, agigantadas pela aragem forte da manhã. Sombras que em breve se transformaram na cabeleira esvoaçante da bela Daura, filha de Armin, esgotando a dor e a vida por Armar, seu amor, desaparecido entre as vagas e o vento.
 
 
Agora a melodia é bem outra: ao som da ‘Opus 45’ de Tchaikovsky agita-se, ao longe, o verde acinzentado dos débeis e caprichosos ramos dos pinheiros-de-Alepo, mas, de onde estamos, já não vemos heróis adormecidos à sombra guerreira do passado, a não ser a silhueta milenar de um ou outro teixo, cujos troncos ainda ecoam as vitórias e as derrotas das longas batalhas havidas por aquelas colinas à  beira-mar. Os  mitos, esses,  desfizeram-se contra os rochedos e o tempo, como se fossem vagas alterosas durante uma tempestade de sentimentos. Resta às mãos peregrinar pela distância que separa uns olhos cansados de um corpo enternecido pela música que chega de longe, oferecida pela maresia e perfumada pela seiva dos pinheiros debruçados sobre  todos os caminhos que levam à cidade.

Assim, acompanhados pela melodia de tais sentimentos, depressa chegamos às portas que atravessam a muralha e, felizes, subimos até ao rossio. Não é dia de feira. Tudo está deserto e as mãos sentem-se bem descansando na frescura das sensações que se alimentam dos aromas e dos sons que os olhos e a boca vão tacteando, até adormecermos à sombra de um belo exemplar da Árvore-do-ponto, ou Tulipeira-da-Virgínia, mas, hoje, as suas flores verde e laranja, como se fossem aves exóticas raras, já não nos angustiam, como dantes, os dias e o saber que íamos adiando com festas e fitas.
 
 
Refeitos do esforço de tanto caminhar, acordamos para o dia que se extingue e olhamos bem de frente as flores que, também elas, parecem querer olhar para nós. Colhemos uma só e vamos oferecê-la à ausência dos dias que, sozinhos, iremos contar um a um, até que esta mesma flor, nadando solitária  em nossas mãos, se multiplique por mil e nos cubra o corpo todo para, assim, ganharmos raízes e ramos e voltarmos a adormecer à sombra de nós mesmos, vivendo entre o sonho e a realidade.
 
 
Augusto Mota, texto 75 de «A Geografia do Prazer», 1999 


 

Textos transversais

 
 


A Geografia do Prazer

 
 
 
QUINTA SINFONIA
 
 
Beethoven excita tanto os sentidos como se fosse uma tempestade de sons a fazer-nos repetir a palavra mágica de Charlotte: Klopstock! E  com os sons fortes desta tormenta vem a saudade de caminhar para trás, muito para trás, ao encontro dos dias que já passaram por nós e deixaram nos olhos  as lágrimas que secaram na garganta muitas palavras que, por isso mesmo, nunca foram pronunciadas. Poderíamos, então, ter pensado em ode, ou em sublime, mas nem estas conseguimos articular. Poderíamos ter oferecido ao silêncio palavras mais prosaicas, mas nem essas as lágrimas conseguiram rejuvenescer.
 
Só estes sons que invadem a paisagem, e se desdobram em ritmos violentos pelos caminhos que ainda temos de percorrer, conseguem arrastar-nos para a nova aventura dos dias, como se o rio e o mar se encontrassem na palma das mãos para, depois, fazerem do corpo o oceano imenso que várias vezes sulcámos em direcção a latitudes mais a sul. Só estes sons, em crescendo violentamente repetido, conseguem iluminar a rota de todas as viagens empreendidas entre um silêncio e um olhar, entre uma sensação e outra recordação.
 
Colma, Ryno, Alpin, Armin - dramáticas personagens de um enredo de palavras e sentimentos à flor da pele do bardo Ossian, ou ao sabor romântico de Macpherson! Míticas personagens a aguardar um outro diário, mas, agora, feito de todas as memórias que vivem para lá das emoções de Werther e que não se esgotam no existir dos dias, antes rejuvenescem as palavras que, como sangue, serenamente percorrem as artérias do corpo à espera de uma secreta redenção, talvez em Golma, o reino de Armin, circundado pelas vagas da tristeza e da esperança.
 
Beethoven excita tanto os sentidos como se fosse uma tempestade de sons a fazer-nos repetir a apoteose que Werther sentiu ao ouvir  a palavra  mágica, enquanto o olhar de Charlotte divagava pela paisagem além, atrás do eco da sua própria paixão. Klopstock! 
 
 
Augusto Mota, texto 74 de «A Geografia do Prazer», 1999
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.