domingo, 31 de março de 2013
A Geografia do Prazer
O CONVÉS DA VIAGEM
Deitado sobre o convés dos livros olho o
cavername da sala, agora transformada em navio, e zarpo em direcção ao
território da espera. O oceano atormenta a saída da barra, enquanto disfarço a
demora com sequências apetecidas e imaginadas:
uma cidade repousa a meu lado e, juntos, vivemos e morremos num
perpétuo vaguear pela nudez das sensações que descobrimos a cada momento. face a face olhamos o espanto de nossos
olhos, enquanto a mão do acaso alcança um sol-em-flor e lança sobre os nossos
corpos o artifício do fogo que já queima as ruas que desejamos visitar. nelas habitamos o prazer desta
peregrinação. não vogamos, afinal, no
oceano. preferimos a volúpia da ria
espraiando-se pelo tempo passado a ver barcos altivos a sulcar a calma das suas
águas e a sentir o cheiro acre do moliço
acabado de estender ao sol.
pousamos a cabeça nas horas solares, como que para sentir o pulsar do
tempo e desenhamos na paisagem aquática o sonho de ontem: como um polvo
agigantam-se os braços tentaculares de uma árvore de carne e seiva. nos seios pendentes queremos olhos, enquanto
do esbracejar dos ramos despontam rosas, relógios e o ritmo que alimenta a
fantasia. é uma árvore feminina esta a
que propomos ao nosso encantamento e é através dela que esperamos lavrar a ria,
o mar e os rios que se atravessam em nossos lábios e impedem a tranquilidade do
corpo. por isso sentimos a cabeça
vazia e não somos capazes de nada.
intranquilos, então, nos olhamos e cansados ficamos da azáfama das horas
e do jogo das palavras que se intrometem nas situações.
Solidários regressamos aos livros que
atapetam o convés da viagem e transpomos o portaló a caminho da realidade dos
dias que são o nada e o tudo de tão difícil existir.
Augusto Mota, texto 21 de «A Geografia do Prazer», 1998
O Artifício da Loucura
O ÚLTIMO CÍRCULO
Há que ter a maravilhosa
certeza de que amanhã tudo vai estar certo. Urge fazer dos dias que avançam
para nós limites possíveis de nossas sensações todas. Há que poder enquadrar em
cada minuto essa certa certeza que hoje nos individualiza. Essa esperança tão
subtil no devir guiado por nossas mãos tem que ser o denominador comum de todas
as sensações de hoje. Senão tudo é falso, tudo nos vai saber a régia
ante-câmara para uma terrível pobreza. De espírito. Sim, porque é o espírito
que hoje nos alimenta e dá forças cada vez mais renovadas para a carne que, em
festim, temos de oferecer a alguém. Ou, então, será a morte.
Vive-se sempre para a carne por
sabor estético. Sempre. Hoje e cada vez mais. Esta deve ser a maior descoberta
do nosso tempo. Devemo-la à psicologia e aos poetas. Destes tiramos, por dom de
formação e sofrimento, aquela verve simbólica com que nos deixamos envolver e
que, mais ainda, nos dá aquele gozo (quase subalimentação) cujo gesto deixamos morrer em nossas
entranhas por egoísmo lúcido, que outros teimam em disfarçar de educação. Esta
jamais pode ser confundida com disfarce. Será sempre e sempre consciência
lúcida em actos e palavras. Será, cada vez mais, exegese de espírito e de
matéria. Impõe-se (e só) por uma consciência universal de tudo o que define o
homem e o integra na vida, essa vida total que hoje o progresso exige sábia,
humilde e consciente. Para tanto, a psicologia
(e a poesia) impõe-nos o espírito
como consciência primeira de vida.
Há que ir bem fundo em nosso eu de hoje e quase morrer no esforço da
travessia de nosso mar subterrâneo.
Sejamos individualistas nessa perigosa viagem. Se voltarmos à superfície será
com a cabeça coberta de limos e alegres com o prazer da vitória. Haverá, então,
a certeza de que trouxemos connosco toda a vida escura de outrora, todo esse arrastar
de algas que nos retraía os passos e nos fazia prisioneiros em nossa própria
habitação.
Feliz viagem esta a dos poetas
e da psicologia. Felizes os que se dão todos depois deste cansaço obscuro.
Tem sempre que ser assim. Este
egoísmo que inunda as vísceras é antes amor ao próximo e nunca a nós mesmos.
Depois a entrega é sempre mais total e nem se confunde com propaganda altruísta
e só-palavras. É adesão total, por carne e mãos, à alma dos outros, àquela
secreta existência alheia que, ávida de calor e gestos, quase sentimos arranhar
nossos olhos e nossos pés. Por isso se torna difícil o caminhar. Os pés sangram, doridos, e os
olhos recusam-se a olhar, por quererem ver mais.
Tudo é assim tão estranho, mas
tão verdade. Tudo é assim tão exigente, mas tão belo. Tudo está, então, certo,
por nada estar certo. É, porém, nesta antinomia de palavras (nunca na oposição total do drama) que tem de radicar o vigor da nossa fé. É aí
que a psicologia e os poetas buscam a definição da vida. O resto perde-se
em palavras que nunca encontrarão eco
para lá do ruído das fábricas, ou dos números que invadem cada vez mais as
escrivaninhas dos bancos e das companhias de seguros. Estranha esta metafísica
dos números por virtude da poesia. Entanto sejamos impenitentes no julgar da
máquina que nos envolve. Há sempre que deitar um braço de
fora e gritar por entre as engrenagens que nos torturam a carne e a alma. Sábio
indício de que progredimos em nosso trajecto. Urge mesmo um movimento de
rotação em torno do nosso próprio eixo, enquanto gravitamos, de pés e mãos, na
sistemática desagregação que a máquina nos impõe. Essa imposição é vital. Mas
que o rodar sobre nós próprios nos dê a meticulosa certeza de que esse facto,
em si causa e consequência, é, sobre todas as coisas, utilidade para nós
revertida utilidade para os outros.
Então existir é cumprir uma
existência de sangue no lugar justo. É saber florir as unhas no esforço da carne.
É, depois, entregar as rosas de nossa fecundação à órbita onde gravitamos por
direito e por utilidade. É assim que a psicologia nos diz que todas as rosas
são vermelhas do esforço do nosso sangue. É assim que os poetas nos confirmam
que as rosas são vermelhas do esforço do nosso sangue. Nesta identidade de
rotação e translação descobrimos o círculo de nossa existência. Por isso
sentimos que tudo nos pertence. Mas de tudo há que ter a poética consciência do
que é orgulho e do que é responsabilidade. É que não pode existir orgulho na
entrega. Ela tem de se justificar pela razão da própria vida e de tudo.
A responsabilidade é que é
fruto da razão que se quer forte para dar mais vida às próprias sensações. Esse
será o gozo total, o último círculo, o nosso limite, a consciência grandiosa de
que o nada e o tudo se identificam com o verbo da existência.
Só assim teremos a maravilhosa
certeza de que amanhã tudo vai estar certo.
Augusto Mota, texto 12 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
-
Discorrências sobre o nosso próprio limite.
quarta-feira, 20 de março de 2013
O Arttifício da Loucura
O MERCADO DE NOSSOS AFAZERES
Andamos permanentemente desacreditados. Todos! Somos
diplomatas desde o nascimento. Envergonhamo-nos uns dos outros. Invejamo-nos uns aos outros.
Se nos ajudamos é, até, para disfarçar a nossa própria fraqueza. Vivemos
dominados nem sei por quê. Agimos controlados pelas horas e apontamos os minutos
como moeda de troca muito corrente. O balanço geral do tempo é impotência.
A juventude, que é uma forma de utilidade e não uma
questão biológica, diz-nos, muitas vezes, que assim acontece. Somamos os anos e
temos pena de qualquer coisa que não fizemos. Sentimo-nos vítimas de um
enredamento da sociedade e da época e da nação. Isto pode ser uma desculpa, mas
nunca uma verdade.
A nação é um conjunto de trabalho. A época é definida pela utilidade desse
trabalho, utilidade que tem de ser só progresso. A sociedade, essa, não vitima
ninguém. É vítima da nossa desculpa.
Assim é fácil o logro. O que podemos é desanimar e
desconfiar da nossa verdadeira utilidade. Mas não é verdade que um simples
tronco pode salvar alguém de um naufrágio? Exigir um transatlântico ao nosso
lado é snobismo turístico. E vida é viagem. Viagem ao centro de nós. E a
purificação é derivada da participação, nunca da entrega-só. Participar na vida
dos outros é viajar no justo lugar a caminho do centro comum que é o trabalho.
O trabalho purifica. E o
amor também. Tudo o que nos faz participar, felizes, purifica. Por isso a
poesia purifica sempre o poeta. Pode não
agir assim para com
o leitor. Só quando se pressente identidade de vivências
se exalta a ligação. E toda a gente tem vivências. Do que viveu e do que não
viveu, mas desejou.
O desejo em poesia importa, aliás, sempre muito
mais. É incontido por natureza. Falha, porém, sempre que as mãos querem agir
muito directamente sobre a cabeça. Vem a tal gramática e a filologia e impõe-se
e interpõe-se, até, a história dos povos. As imagens desbragadas ficam-se a
ruminar outra vingança e podem mesmo dar assassínio.
A morte é, tantas vezes, falta de poesia! Quando
esta existe exalta-se, por suficiência, a distância que a carne impôs entre o
que vive e o que viveu. Não é certo que se exalta, ainda hoje, a morte dos
heróis e poetas com festejos e grinaldas? Nós é que erramos a educação de todos
os nossos sentimentos. Ficamo-nos quietos como as bestas que vêem os filhos
partir a caminho das feiras. Alimentamos de outra maneira o espaço religioso e
familiar e dizemos às crianças que a realidade nos é superior quando, afinal, o
que tocamos vive para nós a partir desse despreocupado gesto.
Os gestos permanecerão em toda a sua plenitude se os
quisermos memorizar. E é essa memória que faz heróis e poetas para os povos. E
essa mesma memória - memória satisfeita -
podia fazer, também, heróis para a família.
Um herói familiar será, portanto, todo o cidadão
justo e guerreiro de intenções. É simples e traz a todos contentamento social.
As grandes batalhas são estas, as do mercado de
nossas intenções.
Augusto Mota, texto 11 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
sábado, 16 de março de 2013
O Artifício da Loucura
A LIBERDADE DA RAZÃO
Sempre que a dúvida procura sobrepor em nosso
espírito o desprezo pelos outros, será bom virar, ainda mais, os olhos para
dentro e mostrar a essoutros a alvura (ou pureza) de nossas intenções, de
nossos devaneios, de nossa utilidade integrada naquilo que nos obrigaram a ser
e fomos, naquilo que não nos deixam ser e queremos ser.
Sempre a vida é este caminhar entre hipóteses, como se não
fossem as árvores da borda da estrada que nos dessem a sombra, ou os frutos.
Que a hipótese seja, quando muito, um estímulo e não a génese da própria
dúvida. Uma e outra se se abraçam é para nosso conforto espiritual. A ambas
devemos o movimento das mãos. Mas a nenhuma só devemos entregar a herança dos
olhos. Estes querem sempre mais, muito mais do que aquilo que avistam em cada
rua e em cada segundo de nós. Os milímetros da carne que nos enforma são tão
necessários aos olhos que, sem horizontes e sexo, tudo ficará reduzido a uma
hipótese, a uma qualquer questão a exigir sábia resposta.
Esta exigência tem, assim, um valor específico em
nossa vida. Ela, por vezes, ultrapassa a própria carne e faz-nos chorar.
Teremos, então, o desequilíbrio entre uma força que age e uma força que não
age. Em sua substância serão idênticas. Diferenciam-se no agir, ou no não-agir.
Por outro lado chega a não agir a mais forte. Por isso mesmo, por ser a mais
forte. Nesta negação ao movimento radica a angústia a sua maior esperança – a
de deixar de ser propriamente angústia.
Os olhos participam bem neste jogo. São eles que ferem e
matam. A garganta, porém, é que absorve toda a força das pupilas e seca-se
nesse esforço. Então paramos em degradação. Então sentimos no sangue e na pele
a própria infâmia de existir. Passamos a desejar outra liberdade em outro
clima, sob outro céu que acaba por ser o mesmo daqui. O turismo é, pois, o grande culpado destes enganos psicológicos. Em nosso corpo, todavia, é que urge
criar um órgão de informação turística apropriado a todos os estados afectivos
que ainda não explorámos. Tudo, então, estaria sob outras ordens e a infância e
a adolescência não seriam jamais presentes de aniversário para nossa desgraça,
mas sim justificação aceitável para cada viagem, para cada minuto, para cada
milímetro de carne e de horizonte.
Ah! Estupor de vida e de corpo que arrasta connosco
as causas e as consequências! Algo deveria separar o que se ama do que se
despreza. Mas separação nítida. Ultrapassável, apenas, em caso de ocasional
exploração em profundidade. É que a horizontalidade é ainda o grande aroma das
sensações. Nela habitamos por imperativo estético, moral, religioso. Nela
alargamos a vista e a carne para fins mais sóbrios do que aqueles em que se
fica o equilíbrio vertical.
Enfim, é esse desejo de fuga e consequência que nos
afasta de nós nos minutos mais belos. Essa fuga uma vezes é música, outras
solidão. Quase sempre é beleza impraticável para lá do gesto de cada mão, ou do
sorriso de cada minuto. Este domínio do tempo por meio dos gestos corporais é
uma outra forma de sabedoria. É um desejar saber para mais querer. É aguentar
as consequências do impraticável, quando a hipótese e a dúvida não se
distanciam o suficiente para nos fazer amar outra liberdade. Liberdade e
vontade são domínios comuns para o mesmo corpo. O corpo, por vezes, é que se
aluga por baixo preço a um desejo-outro que não a liberdade.
Assim volvidos ao centro de nossa própria liberdade,
que mais exigir para tão urgente instância? Ah! A comida para a boca! O vinho e
o pão! Novas liberdades para a carne que, milímetro a milímetro, grita por
liberdade! Ah! O vinho, o vinho! E a carne. Sagração múltipla a do nosso sexo
que também vai, de repente, de um a outro canto de nós, sem que haja barreiras
no seu caminhar. Ele caminha no pão e no vinho como camponês em busca de lavradio
para a sua sementeira. Ele caminha na própria definição de liberdade e
extingue-se no prazer da vontade. É que acima de tudo temos a razão. E
desejamos a razão. A razão é, afinal, um ponto de partida para a solução do
nosso existir.
Assim, que maior desânimo a ultrapassar? Talvez a
razão diga mais do que um gesto da garganta que não chega a articular o nosso
próprio medo.
Augusto Mota, texto 10 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
sexta-feira, 15 de março de 2013
O Artifício da Loucura
PERSPECTIVA DE UMA POSIÇÃO DIMENSIONISTA-ACTUANTE
Descobrir em cada objecto a sua verdadeira essência
é desdobrar cada partícula em ritmo de força e de vida. Força e vida serão para
nós sentimentos demasiado humanos para os fossilizarmos, inertes, em sua
contextura superficial, porquanto todo o movimento que possa descobrir-se na
vida das coisas e dos próprios seres é sempre uma tradução rítmica da
atomização de suas moléculas.
Amamos, então, mais o interior das coisas (mas sempre em compromisso com o
exterior) para as dominarmos. O domínio
da matéria terá que ser a característica suprema de toda a criação. Aí reside a
finalidade do acto. Ser traído pela matéria, julgando que se alcançou a forma,
será abortar a intenção lógica do pressuposto artístico. Esta condição exigível
não é invenção de uma época. Foi sempre jugo aceite para uma
derrota-em-êxito-fácil. Ela, a condição exigível (ou a derrota que existe na própria definição
de exigência), tem sido religião de todos os que, embora conscientes do
fracasso imediato, não renegam os princípios de uma exigente preocupação social
e lutam pela manutenção de uma escala de valores a que, por direito próprio, se
mantêm conscientemente fiéis. Nesta religião reside quase toda a possibilidade
de entendimento de uma única forma e força de expressão, em que um conteúdo
humano e psicológico latente no cerne da nossa constituição se imiscui, por
simpatia e não por vaidade, na descoberta, melhor no desvendar do compromisso
interior-exterior das coisas.
É, pois, neste dissecar tantas vezes sangrento que
radica o amor próprio e a característica suprema de toda a criação como
finalidade, como exigência e, acima de tudo, como vontade.
Augusto Mota, texto 9 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
quarta-feira, 13 de março de 2013
O Artifício da Loucura
DA ARTE COMO CONSEQUÊNCIA
Toda a arte é sempre uma consequência. Consequência da
família, da cidade, do país, do mundo. Consequência ainda do segundo, da hora,
do ano.
Em todos os meridianos o homem deve tender para
a sua perfeição,
perfeição que se traduzirá em utilidade. Esta utilidade, porém, deve
manifestar-se mais na nossa actividade social diária do que nas obras que
realizamos por imperativo estético. Estas não são imediatamente úteis à
comunidade; são, sim, imediatamente úteis ao indivíduo que as produz, porque ajudam a libertá-lo,
consciencializando-o para realizações mais capazes de o integrarem no substrato
nacional de que não nos podemos alhear.
É preciso, sobretudo, dar unidade às nossas acções
todas e conceber a execução da arte como factor de construção interna,
construção que é sempre evolução e progresso para nós e que se reverte, por
força moral, em utilidade para os outros, para a cidade, para o país, já que a
vida comunitária nos impõe sempre uma qualquer forma de participação, de
actividade diária onde podemos espalhar as sementes de nossas conclusões. A
vida, então, mais do que a crítica de arte, nos dirá se fomos ou não sábios em
nossas descobertas. Só assim se poderá progredir, pela entrega de todas as
nossas pulsações àquilo que dizemos amar. Mas este amar obriga-nos a destruir para reconstruir segundo as nossas
paixões, ou impulsos da família, da cidade, do país, do mundo.
Tudo isto, porém, tudo isto submetido à lei do
tempo, imprime à vida um ritmo novo e ao espírito uma sageza que não pode contemporizar
com atrofias de qualquer espécie.
Augusto Mota, texto 8 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 196
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
terça-feira, 12 de março de 2013
O Artifício da Loucura
DA CRIAÇÃO COMO ADVERTÊNCIA
Em qualquer atitude de criação há sempre algo que fica
destruído. É, porém, na consciência dessa destruição que reside um prazer novo,
um imaginar de reacções que, por vezes, não se concretizam, uma satisfação de
criança má cujo primeiro e grande interesse é destruir por destruir.
Mas se a maldade é, quando muito, um prazer
subvertido para os outros, temos, ao menos, que contemporizar com o prazer só,
nunca com as consequências desse prazer. Essas são, por vezes, demasiado
irremediáveis para as tolerarmos um minuto que seja. Assim urge que a
satisfação subvertida não ultrapasse a barreira da imaginação criadora, ou
antes, destruidora, já que todo e qualquer acto de criação implica sempre outro
que se lhe opõe e o antecede no tempo – a destruição. A destruição é, portanto,
em sua origem e considerada moralmente admissível, um primeiro passo para a
criação.
Outrossim urge que saibamos medir todas as consequências
de nossos actos e deles usufruamos aquele estado de satisfação plena que nos identifica com a destruição e a
criação. Ambas terão de ser demasiado
conscientes e integradas num plano de vida socialmente proveitoso.
Destruir, negar, recusar por simples e sádico prazer
é posição demasiado cómoda para nela divisarmos uma ponta de verdade. Esta
nunca se confude com atitudes e gestos teatrais. Nem ainda com a intoxicável
sabedoria dos deuses que tudo desprezam. O seu culto, porém, nem a hoje
subsiste. Assim estaremos mais descansados quanto a amanhã.
Sempre amanhã
foi uma palavra adiada para tudo o que desejamos hoje. Melhor seria que o abuso
desse desejo não disfarçasse o vocábulo num futuro remoto, para lhe saborearmos
já a advertência.
Augusto Mota, texto 7 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
O Artifício da Loucura
DELIMITAÇÃO POSSÍVEL DE UMA INTIMIDADE
Afinal intimidade acaba por ser mais uma traição à
amizade do que uma tradução de determinada atitude de entendimento, que se deve prolongar para
além de todos os limites possíveis (mas
sempre convenientes), nas relações
plurais que o nosso eu desenvolve
dentro de uma sociedade que o destrói gradualmente, à medida que se vai
revelando ao sujeito.
Parece, pois, fatal esta contingência de submissão a
pessoas e a coisas. Mesmo estas, as coisas, na sua intimidade nos poderão
trair. A sua existência como continente emocional possível conduz-nos,
imediatamente, a pessoas e a actos. Por isso nos costumamos afeiçoar tanto aos
objectos. Humanizamo-los, até, com um simples olhar. Depois, difícil será
quebrar o encanto. E então este age logo em condições menos propícias! Vem
mesmo (quase sempre) agarrado à recordação da traição e à traição
das pessoas e às pessoas e ainda à intimidade das pessoas, até fechar o círculo
de humanização (ou antes, descoisificação), na perene lembrança de nós próprios
enquanto seres pensantes.
Assim volvidos que somos a nós mesmos, havemos por
bem delimitar a fronteira máxima
da amizade, definindo-a
não por linhas
imaginárias, mas antes
por acções-princípio que são ainda o grande arauto dos
postulados individuais, o aviso gradualmente avolumado do que se quer e do que
se permite.
Querer e permitir diferenciam-se pela origem e natureza da acção. O primeiro
é o desdobrar de uma vontade-princípio. Exige, para a sua validação, um acto
subsequente que a execute. Permitir fica-se por uma aceitação sem compromisso
com qualquer acção posterior, pois esta pertence a um querer alheio. Apenas se
submete a uma valoração instintiva por parte do eu a quem se pede a concessão.
Saber distinguir a gama de concessões a fazer por
aqueles que queremos íntimos é, talvez, a grande dificuldade da amizade que não
se fica pela palavra.
Saber pensar nos outros, e com
eles, antes de pensarmos em nós, e por eles, nisso reside o segredo de toda
amizade que poderá anunciar a tal intimidade que nunca compromete valores e
posições individuais.
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
domingo, 10 de março de 2013
O Artifício da Loucura
SEMÂNTICA DO ROSA
Parece que o rosa é uma cor de
Domingo. O
Domingo vem sempre floreado deste tom feminino, talvez para disfarce de
angústias e de outros e vários problemas semanais. O rosa parece eliminar, pela
sua suavidade, a aspereza que transportamos em nosso mundo interior sem
calendário de Domingo. Oferece-se-lhe praia e missa ao Domingo. É, assim, uma
cor de distâncias marítimas e religiosas. Mas ao Domingo. Nos outros dias estas
distâncias têm cores mais próprias e, até, mais sedutoras. São sempre, e só,
para uso muito pessoal. Nada têm que ver com as distâncias dominicais, sendo,
por natureza, violentas e com o movimento dos sentimentos actualizados.
Esbatem-se até à transparência só em casos de nítida falha de personalidade.
Passam ainda, por rigor de lei física, de uma para outra cor com a mesma
violência com que se manifestam no apogeu da vibração.
Mas estas últimas são cores de sentimento, não de
acção externa. Por isso, mesmo que se disfarcem com roupagens visíveis,
permanecerão actuantes no tal mundo sem calendário de Domingo. São
sentimentos-cor, mais do que cores de sentimentos. Não são pautáveis senão em
casos muito particulares e, mesmo nestes, carecem de actualização. Dependem do
tempo e do espaço psicológico.
Eternizar uma coloração interior é comprometer um
segredo do maravilhoso com roupagens que acabam sempre por cair no floreado tom
feminino de uso dominical. É uma outra forma de morrer para a descoberta do
novo em cada dia e uma outra forma cómoda de viver para a descoberta do sempre
igual em todos os dias.
De qualquer modo é uma morte
por estagnação de vivências.
Augusto Mota, texto 5 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
O Artifício da Loucura
Há, no entanto, uma sensação nova
neste sublimar do impossível. Ter a certeza disso é aceitar a plenitude da
distância e adequá-la a todos os sentimentos possíveis do universo, para com
eles viver em sã harmonia. Fecundar em cada minuto os desejos (e em desejos) atraiçoados é a maior realização do homem,
desde que disso haja uma grande aceitação e a consciência de melhores
capacidades a desenvolver.
A personalidade não é nada que se
herde de veias familiares. É
(será), quando muito, uma
consciência rigorosamente aceite e defendida, até aos extremos limites, do
absurdo de um princípio de sublimação, ou
para-sublimação (porque
consciente), de uma vida anterior psicologicamente ruinosa. É um destruir e
arruinar consciente de facilidades por prazer absurdo de sacrifício. É a maior
e mais violenta forma de expressão de uma vingança subtil, que acaba por ser a
outra face de Cristo oferecida ao inimigo. E, depois, nem contamos muito com a
recompensa. Quando muito sentimos uma satisfação orgulhosa e superior. Não
satisfação de superioridade, porque acabámos de resumir a personalidade a um
estádio superior de entendimento contra um desentendimento processado a um
nível mais baixo e sempre degradante. E tanto mais ela se desenvolve e processa
quanto maior for a luta e o esforço da luta.
Quando as duas circunstâncias do processo se encaminharem para uma resolução de concórdia, teremos atingido o grau de plenitude que confunde (porque aceita) vencedor e vencido. É a vitória suprema do amor em outros horizontes (talvez marítimos, porque mais planos). É a união de conceitos opostos, mas aceites, já que integrados num princípio de vida e de morte.
Toda a vida é sempre aceitação.
Quanto mais não seja de uma recusa em aceitar o que não podemos em determinado
momento. É que o tempo age, por costume, sempre traiçoeiramente.
Em personalidade, tempo é agente
modelador. Arrasta consigo as intempéries inevitáveis e acaba por construir
excrescências de princípios de personalidade que os outros (se não formos renovando esses princípios de
ansiedade) acabam por admirar, como
fazem os turistas às formas burlescas que os agentes modificadores da crosta
terrestre oferecem às agências de viagem.
Mas como a grande viagem se deve
realizar dentro de nós, não nos deixemos explorar pela elegância de interposta
agência. Construamos, sim, e admiremos
(para modificar) todas as formas
possíveis de bizarria. Desde que a luta não transpareça muito e não aniquile o
compromisso tácito de uma integração útil na sociedade, a tudo nos podemos
permitir.
A consciência da grande liberdade
individual é ainda o princípio mais positivo com que nos devemos debater uma
vida inteira. Quando se luta connosco fazemo-lo por nos sentirmos lutadores
inseparáveis de todos aqueles que combatem por qualquer outra causa humanamente
justa.
A vaidade, hoje e sempre, é que
acaba por ser o pior agente modelador.
Augusto Mota, texto 4 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
quinta-feira, 7 de março de 2013
O Artifício da Loucura
SEGUNDA APÓSTROFE DAS MÃOS
Tudo está subitamente certo. Tudo.
Não, nada está subitamente certo. Nada.
Tudo está subitamente certo. Tudo.
Mesmo o próprio tempo é certo na
sua fria objectividade de separar. É que assim, e paradoxalmente, ele quase
parece aquecer e desvendar. Sobretudo
faz-nos encontrar sobre as nossas próprias silhuetas interiores e a simbologia
secular da própria civilização.
A mão erguida é sempre
diferenciação e contacto! Verticalizando-se, ela apostrofa-se e define-se.
Nessa altura, porém, é já a mão da nossa consciência abrindo-se para os outros,
por nossa via e vontade. Recalcar este
gesto é suportar uma involução de sentimentos que, ficando a arder no seio da
própria cidade, regressam aos pés e queimam e torturam e paralisam.
O caminhar pelas ruas e o não
caminhar pelas ruas (mas progredindo
sempre em nossa secreta esperança) fica-se num lazer que chegamos a aceitar por
raiva de nós. Depois vem a paralisia total em toda a substância que nos define.
A carne e o espírito ultrapassam o limite dos pés e entregam-se à verminação da
terra.
É a morte implantada em nossa
própria habitação. Se reagimos é já em seu favor e por aceitação tácita da
negação de tudo.
Tristes estas cidades volvidas
cemitérios de nossas ânsias! Pobres de nós, cruzes que somos em todas as praças
do nosso público existir! Amanhã triplicará a finados pela fria objectividade
desta separação.
Não, nada está subitamente certo. Nada.
Augusto Mota, texto 3 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
O Artifício da Loucura
O SUFRÁGIO DAS MÃOS
Contra nós ou por nós erguem-se sempre mãos em
intenção. Por vezes ficam-se, apenas, em gesto de espírito, em puro linguajar
simbólico. Quando, porém, a esfera da atitude das mãos ultrapassa (para sua
total definição) a
mera intencionalidade do símbolo, assistimos a uma oposição de forças físicas
já distante da sublimação em palavras.
Há acto de carinho no desprezo. Há, sobretudo, mão
que procura para reter e mão que encontra para afastar. Do prazer da busca fica
a saudade deter encontrado, procurando. Da desilusão da repulsa fica o ódio
deter afastado, encontrando.
Acções de total fisiologia. Reacções de pura
psicologia.
Contra nós, ou por nós, há sempre mãos sufragando em
intenção. Nova missa na actual mística da civilização em forma de cidades.
Augusto Mota, texto 2 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
O Artifício da Loucura
A FLORAÇÃO DA VERDADE
Quando se
encontra uma verdade gosta-se de a usar como se fosse a maior descoberta do
século. Usamo-la ao jantar e ao almoço do dia seguinte e ficamos com a grata
sensação de donos perpétuos do universo. Estranho é, quando, tempos volvidos,
nos ocorre, por mera denúncia de nossa própria e vivida experiência, que o tal
encontro mais não foi do que uma repetição, de nós e por nós, de tudo aquilo
que outros ciosamente guardaram como igual descoberta.
Afinal,
conclui-se em desânimo que repetimos descobertas de verdades como a Primavera
se orgulha de florir as mesmas cores em seu cíclico e louvado trânsito.
Pena é que
o homem não se identifique mais, em seus
pergaminhos de ser e de existir, com a entrega total da floração
da terra. Seria mais lógico em seus apregoados princípios de razão. Seria mais
coerente na própria finalidade da descoberta e na definição do seu próprio
existir como descobridor.
Assim vemos
repetirem-se as verdades exaustas de serem descobertas. Assim vemos os
descobridores exaustos de se repetirem em busca de verdades já descobertas.
Quando se
encontra uma verdade gosta-se de a usar como se fosse a maior descoberta do
século.
Difícil
floração esta a da primavera do homem!
Augusto Mota, texto 1 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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