domingo, 24 de fevereiro de 2013

A Geografia do Prazer


 13  O PRELÚDIO DO VAZIO

A espera é difícil como o silêncio que não atende os desejos e a distância. O tempo vai longo e esquecido dos anseios e das emoções. De longe apenas chegam os vibrantes aplausos no final da Patética de Tchaikovsky. Tudo parece conjugar-se para entristecer a noite e sublinhar o desconcerto da espera.
 
Que nova sinfonia ouviremos agora?
 
Já se anuncia o prelúdio do longo vazio que irá atravessar a noite. Estranha melodia esta que vive entre o silêncio e o desejo, entre a distância e o tempo, entre as trindades e o toque do amanhecer!
 
Que acordes ouviremos, então, na madrugada de nós? 
 
 
Augusto Mota, texto 13 de «A Geografia do Prazer», 1998  

- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória. 
 

Textos transversais

 
 

A Geografia do Prazer

12  A DESCONSTRUÇÃO DOS SONHOS
 
É de noite que se constrói o futuro, quando os corpos se beijam e as cidades crescem segundo as regras do desordenamento urbano e sem pontes para fugir ao vazio de nós.
  
O vazio uma vezes é das mãos, outras da cabeça que coordena os gestos e assume as vitórias sobre o próprio corpo. Os gestos, esses, se parecem impetuosos, são sempre a exteriorização de uma energia que carregamos ao longo dos dias vividos atrás das máscaras que emprestamos às emoções.   
 
Assim, quando gozaremos o prazer da dádiva e, milímetro a milímetro, correremos o corpo todo que nos habita?
 
Aqui o silêncio é a noite que paira sobre a vigília de um caminhar contínuo em sonhos que se fazem e desfazem. O vazio é esse mesmo espaço que habita entre a construção e a desconstrução dos sonhos e de tudo. O vazio será, portanto, o olhar que não vê, a boca que não saboreia, as mãos que não apartam.
 
Mais vale acordar de vez e negociar o momento presente do que vermo-nos continuamente perseguidos pelos fantasmas que habitam o terreno movediço do sono e dos sonhos e onde se afunda a esperança e a voz que chega de longe através do silêncio da manhã.
 
A noite continuará a construir o futuro das cidades, com novas regras e outras pontes sobre o vazio de nós.
 
 
Augusto Mota, texto 12 de «A Geografia do Prazer», 1998
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

Textos transversais

 


A Geografia do Prazer

11  A VÉSPERA DO CORPO
 
É tão forte a sensação de desfilada sobre o jardim acolchoado de malvas e rosas bravas que, como corcéis de crinas ao vento frio do norte, nos perdemos pelos ínvios caminhos do prazer entre as mãos e as colinas sonhadas, por onde suavemente sobe um rio que regressa à nascente. Que reencontro difícil este entre a memória e a vertigem dos dias que já passaram! A nova cidade impõe-se em cada gesto que acompanha a sagração de tal rio, como se todas as religiões do mundo nos encaminhassem para o vértice do universo.
 
Atávica inibição esta de regressar ao passado, com mãos apartando colinas e desejos, ultrapassando, sobretudo, as recordações que se imiscuem entre os dedos e subjugam o corpo todo! Desejar é, assim, uma outra maneira de sofrer ou de querer adiar o desencontro. Só as mãos, portanto, saboreiam os segundos de cada fruto, como se o relógio de tempo estivesse na hora legal!
 
Preferível será estar sentado na cadeira do tempo e esperar que o rio volte a descer por nossos braços e desagúe num mar renovado de emoções:
 
os corcéis do tempo agigantam a hora que passa e se dissolve como música em nossas artérias.     vemos o infinito na palma da mão e agradecemos ao poeta tal augúrio da inocência.     por isso um  céu brilha em cada flor selvagem que acoberta os corpos da nossa razão.     um estertor inunda todos os gestos e parece anunciar o fim da desfilada.     o vento norte mudou de rumo e, agora, uma lufada morna aquece as frontes e abre, deliciada, as portas de uma outra percepção.    a paisagem muda de ritmo.   o outono anuncia-se no escarlate das folhas que se despedem das árvores e de nós.     o silêncio é partitura nova partilhada com emoção.     o diálogo renova a despedida das folhas que já atapetam os nossos olhos.    novo húmus fecundará a próxima estação dos corpos e amanhã recordaremos as mãos, as flores, os frutos e, novamente, as mãos, as flores, os frutos e as alegrias do tempo que vive e morre em nós e na correria louca dos corcéis no amanhecer selvagem de uns olhos aguados a caminho do mar e da liberdade. 
  
Os jardins são feitos de espera e de emoções. Os dias são as estações que regamos com nossos anseios. Os frutos, esses, serão colhidos na véspera de tudo.  
 
 
Augusto Mota, texto 11 de «A Geografia do Prazer», 1998
 
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
                                                                                               

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Textos transversais

 


Textos transversais

 


A Geografia do Prazer

10  A LITANIA DO AZUL

Em nosso peito abre-se a rosa azul do prazer que habilidoso jardineiro cultivou em suas experiências de vida e de morte. Assim  se libertam as sensações como pétalas caídas no chão que havemos de percorrer em sublime litania. Assim beijamos as pétalas azuis e sentimos um frémito avançar sobre o corpo todo e uma maré de recordações enrusbecer as mãos e os pés.
 
Caminhar, agora, é difícil. Voar seria a deslocação apetecida. E pairar sobre o jardim das rosas azuis a satisfação plena de nossos desejos.
 
Tanta energia consumida a tirar, primeiro, os espinhos!
 
Resta-nos, por hoje, um punhado de pétalas azuis que, sôfregos e sofredores, agarramos bem com ambas as mãos e lançamos ao vento pela janela aberta de nossa desilusão.
 
Que cada porção de azul se multiplique em fértil terreno e melhores emoções germinem apetecidas em nossas bocas! As mãos, assim, ficarão mais quentes e, agradecidas, colherão as primícias desse jardim para depois saborearmos o perfume azul da nova botânica.
 
Tal jardim será o constante renovar dos olhos e das mãos em apoteose!
 
Augusto Mota, texto 10 de «A Geografia do Prazer», 1998

A Geografia do Prazer

9  O CIO DO SOL

Enquanto lavro o corpo da manhã, o sol, em seu cio, cavalga um cão de fogo por entre nuvens afiladas e a construção das cidades adivinhadas. Bem perto, porém, há o rodopiar incessante do disco rubro que agora se estampa em nosso olhar. Vemo-lo para além das nuvens. Vemo-lo em cima e para além deste corpo que se adelgaça no esforço de transportar o astro a caminho de outras galáxias mais perto de nós.
 
Rítmica é a sensação do sexo em desespero perante o olhar artesanal, a firmeza da mão, o gravar da matéria.
 
Assim se constroem as nossas cidades interiores, que ora são corpo de mulher, ora vielas estreitas por onde vagueamos a tristeza e as mãos vazias de tudo.
 
As colinas ao longe agridem o espaço como justo contraponto a este paroxismo de dor e de prazer.
 
Deixemos as coisas acontecer ao ritmo do tempo que tomou conta do nosso acaso.
 
Augusto Mota, texto 9 de «A Geografia do Prazer», 1998
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

Textos transversais

 
 

A Geografia do Prazer

8  O SORTILÉGIO DOS FRUTOS

Suculentos frutos frescos abrem-se à boca como romãs ao sol poente e o sumo carmim de suas veias derrama-se como música em nossas mãos. O bardo entoa o sortilégio de um céu longínquo de azul e fantasia. Muito para além das janelas desses frutos antevejo os tempos em que, juntos, bebemos suas sementes, quando a maresia e o vento leste nos pinhais parecia prolongar a doçura de cada gesto e tais frutos, abertos à natureza, diziam de nós e de todas as colheitas que sagravam os bosques do nosso contentamento.
 
Em seu constante revolver o mar acolhe este balançar entre a memória e o vento, enquanto o bardo insiste nos tons outonais do poente que separa a vida e a gente.
 
Lestos são os frutos em seu despontar do prazer. Serão novo andamento em secreto concerto, melodia vaga e triste que ensombra os dedos e chora por nós um adeus que festeja o álacre outono em sua primaveril renovação.
 
As estações do corpo cumprirão seus ritos!
 
Augusto Mota, texto 8 de «A Geografia do Prazer», 1998

A Geografia do Prazer

7  O CÍRCULO DO DESEJO

O destino é célere em seu espanto quando tudo se torna subitamente impossível. Cada curva é o assomar do desejo fértil e a razão irrompe pressurosa num dissipar da luz que invade os membros e nos arrasta para longe das emoções que já inundam a cabeça e os pés. Viandantes somos nesta peregrinação errante pelas veredas do desejo.
 
Desejar é uma outra maneira de saborear os olhos e com eles sorrir às mãos que guiam tal caminhar apressado na direcção do impossível. Desejar será, ainda, um outro modo sereno e meticuloso de medir as distâncias entre o ser e o existir. Existimos quando viajamos a caminho do que somos só para nós mesmos. Seremos quando o caminho percorrido nos dá a grata certeza de termos viajado, satisfeitos, para fora do nosso limitado círculo de acções e reacções.
 
Se um verbo pode acender a noite, as estrelas serão flores num universo de emoções e o jardim do desejo ficará perene em sua flamejante primavera.
 
A quem ofereceremos as rosas de tal estação? Ao mito ou à emoção? Para nós guardaremos os espinhos como consciência deste viajar sem remissão.
 
Augusto Mota, texto 7 de «A Geografia do Prazer», 1998
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

Textos transversais

 


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

EKPHRASIS

A propósito dos três textos abaixo publicados, todos baseados em obras plásticas, em cujo universo sentimos necessidade de voltar a entrar  pela emoção das palavras, ora através de uma escrita mais automática, como em «A Ponte» e «Génese», ora através de uma prosa mais elaborada e racional como em «Loro Sae», recomendamos a leitura do texto seguinte, que define tecnicamente este tipo de produção literária, onde também se podem enquadrar os «Textos transversais» e as  «Legendas íntimas», que, em breve, voltaremos a publicar.

Termo grego que significa "descrição" (no plural, ekphraseis), aparecendo em primeiro lugar na retórica de Diónisos de Halicarnasso (Retórica, 10.17). Tornou depois um exercício escolar para aprender a fazer descrições de pessoas ou lugares. O locus classicus na literatura épica é a descrição do escudo de Aquiles feita por Homero (Ilíada, 18, 483-608). Virgílio seguiu o mesmo modelo para a descrição do escudo de Eneias na Eneida (8, 626-731). Um outro tipo de ekphrasis concentra-se em descrições epigramáticas de pinturas e estátuas, como La galeria de Marino e muita poesia emblemática. O termo alemão Bildgedicht corresponde praticamente ao conceito de ekphrasis, neste sentido de descrição de uma obra de arte (pintura ou escultura). Os poetas românticos recorreram amiúde a este artíficio, tendo ficado célebre, por exemplo, a "Ode on a Grecian Urn", de Keats. Naturalmente, o recurso às descrições particulares está presente em muita poesia contemporânea, sobretudo a partir do momento em que a poesia se tornou cada vez mais próxima da prosa narrativa. Na literatura portuguesa, o livro Metamorfoses (1963), de Jorge de Sena introduz um tipo de poesia descritiva que tem como objecto de contemplação toda a obra de arte visual. Este tipo de descrição plástica, não limita o conceito de ekphrasis a uma simples e passiva exposição dos dados observados, mas conduz-nos a um exercício reconstrutivo do que foi examinado, querendo interferir subjectivamente nas qualidades do objecto. O poeta ecfrástico raramente se contenta com uma descrição objectiva do que observa, quando tem a possibilidade de comunicar livremente o seu próprio gosto. A Secreta Vida das Imagens (1991), de Al Berto, ou Depois de Ver (1995), de Pedro Tamen, podem ilustrar o lado dinâmico da ekphrasis.

 
Carlos Ceia, in «Dicionário de Termos Literários»

http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=961&Itemid=2
 

LORO SAE

 
 
 
Augusto Mota, «Sol Nascente / Loro Sae», serigrafia, 44 x 33 cm, 1999
 
 
Abre-se a terra para homenagear um povo que habitou as suas entranhas, enquanto aguardava que, um dia, o sol como um galo de luta, anunciasse a vitória perpétua dos seus sonhos.
 
Abre-se, depois, a terra para erguer um monumento à memória dos que já não viram o futuro, mas onde as cruzes, em honra do seu sacrifício, serão memória e fundamento de uma nova cidade.
 
Abre-se, também, a terra para marcar uma fronteira visível entre essa memória das muitas vidas anónimas perdidas e a perfídia das resoluções urgentes todos os dias convenientemente adiadas.
 
Abre-se, ainda, a terra para afastar, de vez, do sol nascente, as palavras ardilosas e os sorrisos dissimulados que, como um verme astuto e peçonhento, rastejam, sem rosto, pelos caminhos cobardes da traição cruel e impiedosa.
 
E a terra abre-se, finalmente, para deixar o engenho das mãos e das máquinas limpar as sombras negras que o fogo do ódio projectou na paisagem clara e nas ruas férteis de tanta esperança. Que os nós que alimentam as cordas dessa esperança sejam bem firmes, para aguentarem os ventos de tanta adversidade. E que nas praias do desespero de ontem arribem, pela maré cheia, os barcos da boa-nova e da abundância. Nos porões da solidariedade hão-de levar, também, fado e saudade. Para cantar o destino de um país que terá de carregar, para sempre, em seu nome, como letra inicial, a cruz dolorosa da sua construção.
 
Augusto Mota, in «Juntos por Loro Sae», Leiria 1999, Edição Jorlis, p.52.
 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

GÉNESE

   
 
Augusto Mota, «Vórtice, ou a génese do feto nuclear», 30 x 40 cm, óleo sobre cartão, 1958
 
 
...E um dedo enorme saíu do vácuo e atravessou o espaço neutro que separava a escuridão do indefinido, do plano da realização futura. E o dedo cresceu e o dedo aproximou-se cada vez mais da realização que a si mesmo impôs. A superfície já lá estava. Branca e morta, branca e sem vida. Mas uma luz roxa quebrou o movimento silencioso do dedo enorme que se deslocava no espaço e veio anunciar a vida futura, veio dizer como a cor seria vida e o branco deixaria de ser morte, como o preto era a cor mais garrida e como esse preto era uma mistura de todas as cores.
 
Foi então que os dois mundos entraram em conflito e com a energia activa de um e a mórbida passividade do outro, um neutro intermediário iniciou a génese do desconhecido...
 
O dedo enorme criou um turbilhão de círculos de cores contrárias e decrescentes que se espalhavam pelo horizonte e quase tapavam as montanhas que lá ao fundo o amarelo triste do sol poente fazia realçar. E os círculos em turbilhão moviam-se sem cessar e as cores sucediam-se como fumo...
 
Então o dedo enorme parou e contemplou a sua obra e riu-se e as suas gargalhadas quase o atemorizaram quando o eco ficou a soar no espaço e chegou ao vácuo donde o dedo enorme saíra. Mas o eco das gargalhadas aumentou e começou a transformar-se em gritos horríveis, gritos variados mas sempre horríveis, gritos de mulheres grávidas e gritos de hecatombe... E o dedo enorme começou a encher-se de pêlos asquerosos e quase se arrependeu de ter saído do vácuo eterno onde habitava. E os pêlos asquerosos gritaram-lhe a sua culpa e ao transformarem-se em dedos pequeninos aniquilaram o gigante perverso que correu a refugiar-se dos gritos de mulheres grávidas e dos gritos de hecatombe. Então todos aqueles dedos pequeninos quiseram remediar o mal do gigante perverso e entregando-se às suas funções sorriam quando os gritos horríveis e variados se transformaram em melodia universal de confiança e amor!
 
E foi logo a seguir que eles viram aparecer uma mulher preta e nua, que corria e cantava. Era ela a confiança e o amor, era ela que levantava os braços para o ovo gigante da humanidade nascente que se gerou no turbilhão de círculos de cores contrárias e decrescentes. Eram dela os gritos de mulher grávida, eram dela os gritos de hecatombe, porque ela gerou a humanidade nova e gerou a humanidade que produziu a hecatombe. Mas ela é mãe e tem esperança, porque tem amor ao que criou. Por isso ergue os braços para o ovo da humanidade nova e entoa a canção da vida e da promessa sincera de um futuro harmonioso. Mas ela corre através dum deserto amarelo, ela a mãe nua e preta, de seios carnudos de quem gerou uma humanidade, e esse deserto é infindável porque é o deserto amarelo do desespero. Mas a mãe nua quer alcançar o que ela gerou e, por isso, o deserto não é infindável. Ela tem fé, porque tem amor!...
 
Mas ao longe, no vórtice de cores contrárias e decrescentes, o ovo gigante começou a abrir brechas de casca ressequida e um estampido abalou a atmosfera do deserto amarelo. E do ovo gigante surgiu um rebento de árvore verde que, em contacto com a nova atmosfera, tomou proporções desmedidas e vários ramos cruzaram o ar com as suas pontas afiadas de vida nova. A mãe nua saudou a nova génese e afirmou a sua confiança numa humanidade mais forte, personificada naquela árvore cheia de vida, com as suas raízes bem presas na areia amarela do desespero e os seus ramos pontiagudos bem lançados a caminho do infinito, onde se encontram os seres bons e universais...
 
 
Mas dum ramo mais fraco ela viu uma corda fina suspender-se e mesmo na ponta uma bola preta apareceu e logo foi aumentando até se transformar num morto, um homem morto e enforcado, que pendia mesmo sobre a bocarra hiante do turbilhão de cores decrescentes que o dedo enorme criara. A mãe nua sentiu o corpo estremecer e os seios carnudos e pretos começaram a engelhar, pois ela sabia bem que aquilo representava a morte da humanidade que ela própria gerara no seu ventre escuro. Ah! Mas como ela voltou a correr de braços abertos ao encontro do ovo gigante quando viu o homem enforcado transformar-se num ovo pequenino de madrepérola! É que isto foi o sinal renovado de uma confiança universal e ela pressentiu-o, ela a mãe duma humanidade nova.
 
 
E lá ficou a balançar no fraco ramo da árvore, mesmo sobre o abismo de cor e movimento, aquele sinal de madrepérola. 
 
Mas a pouco e pouco mais ovos se ergueram do chão amarelo e sempre mais e cada vez mais, até cobrirem o horizonte de montanhas batidas pelo amarelo triste do sol poente e aniquilarem o espectro daquele menino podre, daquele monstro genético que, lentamente, se foi elevando no infinito céu azul.
 
Só então a mãe nua alcançou o ovo gigante e atravessando o bosque de névoa verde que ainda o sustinha, gritou: Génese! Génese! Génese!
 
 
E assim foi destruída a lenda do dedo enorme que acreditava na génese de uma humanidade perdida...
 
Augusto Mota, in «Quadriculado» - caderno de prosa, edição do autor, Coimbra, 1959, pp. 5 a 7
 
Obs.: Este texto, de sequência algo onírica, baseia-se no processo criativo e no universo da pintura acima reproduzida.
  

A PONTE

 


Augusto Mota, «Tropismo», 59 x79 cm, tinta plástica sobre platex, 1960
 

Na verdade nunca fui ponte, mas, hoje, senti bem a natureza da sua ligação em horizontal, da sua projecção em suave arco aviajado alongando-se no espaço, como que a contradizer o tropismo que nela se começava a desenvolver, impedindo, assim, a travessia para o outro lado. Ao fundo, mas muito ao longe, avistava-se, por baixo do arco, a cidadela no seu deslumbramento de luzes esbatidas nas águas da vazante. O porto, silencioso da faina, animava-se só com o esvoaçar hesitante das gaivotas. O poente ainda se riscava de vermelho, enquanto o astro não desaparecia totalmenente na linha do horizonte. Mar e terra sofriam agora a angústia de um volver de atmosfera e os homens na cidade acautelavam os seus afazeres acendendo, antecipadamente, milhares de lâmpadas em arraial.
 
"A ponte!  A ponte!"
 
O astro desapareceu totalmente e a ponte permaneceu firme na sua estrutura de betão e ferro que a consolidava no leito lodacento do rio e a água, cada vez mais na vazante, fecundava os pontos de nascença do arco, excitando o tropismo que iniciou a barragem à peregrinação que se aproximava. Como semente germinando extemporaneamente, a lua cheia derramou centelhas de luar sobre a ponte e logo saltaram, precisos e erectos, troncos e gavinhas que foram crescendo em ascese apoteótica, enquanto os peregrinos se esforçavam por ultrapassar este obstáculo, entoando rima profanas.
 
"Contornemos o obstáculo!"
 
E todos se prepararam para descer o arco de suporte da ponte, julgando, assim, iludir a verticalidade que se lhes opunha. Numa necessidade de geotropismo o obstáculo prolongara as suas gavinhas em direcção ao leito do rio e formara uma muralha compacta de lianas que repercutiam o marulhar da água, como se fossem tubos de um gigantesco órgão sacro. Então feriu os ares uma célebre melodia religiosa e os peregrinos recuaram assustados e, céleres, procuraram ajoelhar-se, enquanto a estrutura da ponte acusava as vibrações das cordas sonantes e ameaçava ruína neste frenesim que aumentava cada vez mais.
 
"O tropismo!  O tropismo!"
 
Estavam salvos os peregrinos, quando compreenderam que se encontravam precisamente no ponto de concorrência das quatro linhas que definem um sistema de ponte em qualquer situação geográfica.
 
 
Augusto Mota, texto  8  de  «Metáfora, », 1960
 
 
- textos de iniciação e reconhecimento.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Textos transversais

 



Textos tranversais

 
 


A Geografia do Prazer

6  AS SEMENTES DA VERTIGEM

A caminho do sete-estrelo viajo por entre a névoa das mãos que a cidade oferece em seu arguto viajar. Viajo pelo lado secreto dessas mãos que afagam a manhã enquanto o sol desponta criador sobre o vale encantado das emoções, lá onde a viagem se faz de retornos e de lentos progressos a caminho do sal e do mar que se esbate no olhar claro e profundo do horizonte.
 
A paisagem humaniza-se e restitui as bençãos que damos ao lento acordar da manhã. Os olhos, esses, abrem-se de espanto e sacrificam às mãos as novas sensações que viajam muito para lá desse olhar claro do horizonte, que é, ao mesmo tempo, ternura e fonte onde bebemos a sede deste amanhecer.
 
A viagem é a paisagem que atravessamos em nossas vidas. As paragens são, então, um outro retorno que progride dentro de nós e por nós. A saída será sempre o mar ao fundo e o banho da alma que  se purifica na maré calma que invade os membros todos e disfarça tal caminhar ao encontro do significado último de todas as metáforas arrumadas na memória das coisas e dos gestos.
 
Difícil tal viagem! Mas é nesse contacto que o secreto significado dos sinónimos nos arrebata e vive para além de dois mil anos! 
 
Criar um mundo de outras sensações é deixar que as emoções vivam e morram em nosso espanto e beijem as mãos das floridas manhãs entre a vertigem e o sexo. Sementes prolíficas estas que compramos à beira dos precipícios e lançamos ao vento para libertar a vida que germina em nossos dedos e no bico adunco das aves que, em voos planados, gritam marítimas liberdades e saúdam a vertigem de tal sacrifício!
 
Sempre o mar recompensa o esforço e o olhar. Cumpriu-se, assim, o destino da metáfora que alimenta os dias e morre ao longe nas curvas do destino.
 
 
Augusto Mota, texto 6 de «A Geografia do Prazer», 1998
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Textos transversais

 
 
 
 

Textos transversais

 
 
 
 

Textos brevíssimos


Crise
Dizem os pais extremosos: "O Carnaval é só uma vez por ano. Faz-se o sacrifício de alugar uma máscara!"
Dizem os políticos insensíveis: "O Carnaval é todo o ano! Todos devem fazer o sacrifício de comprar uma máscara e exigir a respectiva factura."
 
Pestes
Os couvais, em todo o país, estão a ser fortemente atacados por lesmas. Os políticos parecem estar imunes.
Não deveriam ambas as culturas ser pulverizadas com eficazes agroquímicos? Com agricultura biológica já lá não vamos!
 
Educação
Teve mesmo que mudar de vida. Agora dedica-se à cultura do chá. Não para exportação, mas para o mercado interno. Para implementar as deficiências crónicas da banca.
 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Textos transversais

 


Textos transversais

 
 

A Geografia do Prazer

5  A GEOGRAFIA DO PRAZER

A boca respira outras sensações e molda a paisagem ao ritmo da descoberta. Novos caminhos sobrevivem a tão ingente esforço e na madrugada habitam os gestos que correm e percorrem o sabor do corpo. Que novo sentido definirá esta hesitação que povoa a geografia do prazer?
 
Uma mulher em oferenda sagra a cidade que habito em cada gesto. Alongo e prolongo as mãos e, assim, o horizonte aproxima o ritmo de um outro poema. É Vivaldi escutado entre a memória e o presente. É o gesto que antecipa o futuro e morre entre as palavras que a emoção não articula.
 
Outra gramática terá que definir a sintaxe das novas sensações e povoar as mãos com a recordação dos dias que vivemos em cada segundo.
 
 
Augusto Mota, texto 5 de «A Geografia do Prazer», 1998
 

A Geografia do Prazer

4  AS SÍLABAS DO SILÊNCIO

Com as mãos amacio as palavras e o néctar dos dias que amanhecem em cada gesto. O prazer repete o olhar e molda cada segundo ao ritmo de um desejo que é sagração primaveril de todas as estações do corpo.
 
Vai longe a maré alta do equinócio, quando as ondas trouxeram à praia a rebentação dos dias. Oficiamos agora outros conhecimentos entre as redes e o perfume da maresia que envolve a espuma dos dias.
 
Habitamos, assim, o ritmo das ondas que se desfazem no gesto do olhar, lá onde as palavras não dizem mais do que as mãos querem percorrer. Longa jornada esta entre o carinho e o verbo! Como contornar, então, as sensações que se erguem entre os dedos e acariciam o despontar desta madrugada?
 
Tarefa difícil esta em que as sílabas do silêncio vivem e morrem na revolta das palavras que traem as sensações-todas que habitam as mãos. Cada gesto irá perpetuar a dimensão da oferta e os dias claros esbatem-se para além das colinas que festejam o amanhecer da cidade.
 
O futuro despertará satisfeito por entre as sensações de cada gesto!
 
 
Augusto Mota, texto 4 de «A Geografia do Prazer», 1998


- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Textos transversais


 

PRENÚNCIO DA CIDADE SITIADA

Como um deus sorvo as colinas do desejo e sigo, perdido, pelas sendas agrestes da memória e de um tempo que parou aqui. E agora, receoso, fujo de mim em direcção às mãos que desenham cada gesto e perpetuam o amanhecer.
 
Duas estrelas recordam os êxitos dessa memória e clamam pelo subtil silêncio da cidade sitiada. Não é vã a glória que é prenúncio de outra cidade! Sempre o corpo há-de ser metáfora de mulher e de cidade! Assim a conquista corre célere pelas mãos que, em uníssono, celebram o ritual do sacrifício.
 
Um dia tudo há-de ser claro como o grito da vitória entre as mãos em penitência. A confissão ficará adiada para a memória do presente!
 
Augusto Mota, texto 3 de «A Geografia do Prazer», 1998 
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continenntes da memória.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Textos transversais

 
 


Textos brevíssimos


Recreação
Por sugestão amiga, a contragosto, fui visitar um museu de marionetas. Afinal gostei. Encontrei lá muitos políticos da nossa praça, ainda bem presos aos cordelinhos e às cruzetas que os manobravam na feira de todas as vaidades.
 

Textos brevíssimos

 
Fundamento
Num país perdido algures, entre o deserto e o esquecimento, havia um ministério que era um mistério. Só quando o povo defenestrou o ministro se descobriu que, por debaixo da sua majestática poltrona estava, disfarçado, um poço sem fundo.
 

Textos transversais

 
 


AS MURALHAS DE JERICÓ

 
O peito aberto é a espada ávida dos novos cruzados. A conquista passa sempre pelo ritual dos dias e Jericó anuncia o cantar da madrugada. Os guerreiros despem a cota de malha e oferecem o corpo à sagração da luta e beijam a vida e a morte no ardor de cada segundo. Mas o silêncio da luta só perpetua o gesto das mãos que correm e percorrem o calor da eternidade. Se cada segundo é o pulsar da artéria, então, aí, jaz a eternidade, no pulsar da artéria, entre as mãos que conquistam o amanhã de todas as madrugadas e a boca que saboreia o acaso do futuro. É nesse momento preciso, em que tudo excita e consome a memória dos dias, que a vitória canta e rejubila entre as muralhas do desejo. Depois amanhece o presente como se fora o sabor de um horizonte proibido e tudo se esvai entre as mãos que acariciam o sol, ou o futuro.
 
 
Augusto Mota, texto 2 de «A Geografia do Prazer», 1998

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

ENTRE AS COLINAS DA MEMÓRIA

 
A verde escrevo o sol que escorre pelas minhas mãos e tudo se dilui na saudade de infinito e nos desejos dos olhos claros da madrugada. Antes fosse um poema que perpetuasse os segundos que em mim ardem como bicos aguçados que sangram os lábios e a dor do futuro. Mas futuro é o presente que arde e sente, que fere e pressente o rosto que acaricia um horizonte de mãos entre as colinas da memória.
Se o futuro é cada segundo que hoje vivemos, que se eternize o júbilo da sagração e se festeje cada gesto como dádiva sequiosa que inunda o corpo e percorre, em êxtase, os caminhos da cidade sitiada.
Sobre as colinas de Jerusalém dormem as mãos e a boca dessa memória renascida das cruzadas, dessas lutas sem inimigo, desse esvair por dentro do passado sem futuro, ou do futuro sem presente. De qualquer modo sentem-se e pressentem-se as mãos que ardem entre as colinas da memória, agora rejuvenescida, e sentem-se e pressentem-se as lágrimas que escorrem entre os dedos do dia que amanhece. Serão contas, talvez, de um novo rosário de feitiços e encantamentos.
Um outro sufrágio das mãos ritualiza, agradecido, uma nova religião de gestos em oferenda. O oficiante está pronto para as trindades do amanhecer!
 
Augusto Mota, texto 1 de «A Geografia do Prazer», 1998
 
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.

Textos transversais

  

 

Textos brevíssimos

 
 Contratempo
 
“Só faço o que quero, quando quero e para quem quero”. Um dia, inesperadamente, a dama sem rosto e de capuz negro ceifou-lhe, para sempre, as palavras de tal querer.
 

Textos brevíssimos

 
 Extinção
 
Foi o fundador da sua própria religião, seu único oficiante e seu único crente.
Por isso não houve lugar a qualquer cerimónia religiosa fúnebre.
 

Textos brevíssimos

 
 
 
 
Lenda tibetana
 
 Qual alpinista, chegou sem  fôlego ao pico mais alto da montanha. Aí depôs uma bandeira de oração no monte de pedras sagradas e dessedentou, com as próprias lágrimas, o esforço da escalada. Depois adormeceu o cansaço na ternura do sono e do sonho. 
 
 
 
 
* Tibete - Bandeiras de oração. Fotos de Nuno Verdasca.