sexta-feira, 30 de agosto de 2013
A Geografia do Prazer
NOITE OPERÁTICA
De noite se constroem cidades. De noite se
voa sobre as cidades que vivemos e imaginamos, enquanto os olhos correm sobre
uma paisagem de milhares de pontos luminosos a debruar os caminhos das trevas.
Tantas luzes vistas do cimo do Monte, a brilhar lá em baixo e ao longe,
transformam a noite numa imensa basílica onde os peregrinos somos nós que
pagamos a promessa de viajar eternamente entre as mãos e a madrugada. As
orações são os novos sentidos do corpo e o oficiante é o desejo que, humilde,
celebra o renovar de todas as caminhadas.
Atravessamos o território da noite
enquanto milhares de velas cintilam no vasto recinto do santuário ou se espalham, atentas,
pela escadaria sagrada. São figurantes que aguardam, extáticos, que alguém
escreva o libreto de uma monumental ópera cujos ensaios vão decorrendo ao longo
dos ofícios nocturnos. Antecipamos, só
para nós, a chegada da carruagem divina, puxada por oito corcéis brancos, com estrelas azuis a decorar
os finos arreios de ouro e prata. Vindo de longe, do meio das nuvens e da lua
cheia, um carro alegórico atravessa a colunata e estaca mesmo em frente da
multidão ansiosa. Um coro entoa salmos que elogiam os anjos e os tronos de onde
eles zelam pela sombra de nossos passos. Abrem-se as portas da carruagem e a
rainha da noite, de largas vestes azuis e brancas, desce suavemente, por entre
harpas e trombetas, amparando uma
lua no regaço e erguendo um sol na mão direita. Caminha, agora, sobre um
tapete de incenso e de ervas aromáticas, até se diluir por entre as luminárias
que redobram os seus lampejos para, de súbito, tudo se apagar da memória, tudo
ficar uma noite escura vista do cimo do Monte, com luzes reais a brilhar lá em
baixo e ao longe.
Descemos da noite e do Monte pelas
estradas íngremes da emoção, a caminho da nascente de um rio claro que
atravessa as mãos e desagua na infância do olhar, todos os dias ao
pôr do sol.
Augusto Mota, texto 70 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
A Geografia do Prazer
A RIBEIRA DAS FRAGAS
Do mirante vimos o revérbero do calor ao
bater nas fragas abruptas do outro lado do desfiladeiro.
Mas olhar lá para o fundo da garganta, ver a ribeira de Alge a saltar pequenas cachoeiras e a correr por entre a ramaria de árvores frondosas antecipou-nos a frescura das suas águas e o conforto da sombra de tanto amieiro, de tanto carvalho, de tanto freixo, de tanto loureiro. E descer lá abaixo, depois de tanto calor, foi descer a uma outra realidade, onde um subtil jogo de luz e sombras parecia criar uma ilustração tridimensional de um bocado do paraíso, com a água a correr por entre penedos e manchas de claridade projectadas por um sol da tarde, coado pela folhagem viva e agradecida daquela floresta primeva. Como numa catedral havia o silêncio respeitoso das pessoas a quererem gozar a sua paz e a paz dos outros. Só as levadas que outrora deram força às engrenagens das azenhas pareciam querer impor a música diluída da sua corrente, apressada em retomar o curso da ribeira.
Mas olhar lá para o fundo da garganta, ver a ribeira de Alge a saltar pequenas cachoeiras e a correr por entre a ramaria de árvores frondosas antecipou-nos a frescura das suas águas e o conforto da sombra de tanto amieiro, de tanto carvalho, de tanto freixo, de tanto loureiro. E descer lá abaixo, depois de tanto calor, foi descer a uma outra realidade, onde um subtil jogo de luz e sombras parecia criar uma ilustração tridimensional de um bocado do paraíso, com a água a correr por entre penedos e manchas de claridade projectadas por um sol da tarde, coado pela folhagem viva e agradecida daquela floresta primeva. Como numa catedral havia o silêncio respeitoso das pessoas a quererem gozar a sua paz e a paz dos outros. Só as levadas que outrora deram força às engrenagens das azenhas pareciam querer impor a música diluída da sua corrente, apressada em retomar o curso da ribeira.
Apetecia mergulhar os pés e as mãos
naquela água límpida e caminhar, caminhar por aquele líquido silêncio, até
encontrar o resto do paraíso, ou, então,
adormecer bem no
meio da ribeira,
em cima de
um penedo arredondado e batido pelo sol para, como
uma sereia, divagar pelos caminhos encantados das mãos, dos olhos e das
palavras. Construiríamos a noite em pleno dia e saudaríamos a vontade de ver as
árvores florescerem milhares de estrelas. Estrelas para iluminarem o rasto das
palavras que vamos deixando atrás de nós, como indício de uma peregrinação a
caminho de nada e de tudo. Talvez até construíssemos uma jangada que nos
levasse a outros continentes, perdidos
entre a memória e os dias claros.
Se aportássemos ao litoral da memória, em
dia bem claro, iríamos, por certo, a uma azenha trocar grão para, depois,
espoar muito bem a farinha e fazer pão fino que alimentasse o sonho e o
passado. Do farelo tenderíamos alimento
para os cães que estivessem de guarda ao nosso sossego, ou nos ajudassem a
pescar alguma truta mais distraída. De varas de eucalipto faríamos uma ponte de aventura suspensa sobre os
dias escuros, já que do outro lado há sempre lugar para novas esperanças. Ou,
então, atravessaríamos a ribeira a vau, se a corrente não fosse muito forte e
não houvesse o perigo de sermos arrastados para as margens longínquas do
passado. Uma vez do lado de lá regressaríamos à realidade de uma tarde quente
de Domingo.
Do mirante vimos
o revérbero da emoção ao bater nas fragas abruptas do outro lado da memória.
Augusto Mota, texto 69 de «A Geografia do Prazer», 1999
sexta-feira, 23 de agosto de 2013
A Geografia do Prazer
DIA DE MERCADO
Hoje era dia de mercado na cidade.
Vendia-se e comprava-se roupa. Vendia-se e comprava-se fruta. Mas dava-se
alegria. A alegria que as mãos sentiram ao percorrer os caminhos sinuosos e
sombreados por entre as tendas do mercado de levante. O calor era muito e
tivemos que repousar quando o sol
parecia querer atrasar os passos em direcção à tenda onde se expunham imagens
de sonho e de mar. Soubemos, deste modo, antecipar o que os olhos percorreram
no corpo dos frutos pintados na maré-cheia das emoções e das tintas e das
telas, quando o mar conseguiu trazer até nós o sabor e a cor das enormes maçãs,
à sombra das quais passeámos as mãos pelas sensações dentro. Se numa das telas
alguém dormia à beira-mar, encostado ao fruto do desejo, esse alguém era, por
certo, uma imagem antecipada do futuro recobrando forças para caminhar ao lado
do presente.
Como num espelho de duas faces, presente e
futuro confundem-se nas voltas sinuosas do olhar que se espraia por horizontes
longínquos, contrariando as mais elementares leis da perspectiva. Contrariando,
até, as leis da gravidade, ao imaginar alguém fugindo do presente e remando
afincadamente, num mar de nuvens encapeladas, em direcção ao futuro. Que
presente é este, então, de onde fugimos ao sabor das vagas que assolam o corpo
e arrastam as mãos para lá das imagens reflectidas num espelho já embaciado
pela maresia, ou pela transpiração ofegante das mãos? Se a tinta das maçãs, que
vimos a deslizar pelo glaciar abaixo, ainda estivesse fresca, teríamos aberto
nelas uma porta de acesso ao outro lado do espelho da realidade e deixado que a
imaginação cavalgasse golfinhos pelo céu além, como se fossem cavalos selvagens
à desfilada por uma reserva à beira do sonho e do mar.
Saímos da tenda das imagens e perdemo-nos no mercado de tanta
sensação. Eram sons, odores, sabores e cores. E também as dores que sentimos
pelo corpo todo quando tacteámos o caminho de regresso às tendas que vendiam
fruta e roupa. Comprámos trajos novos para outras ocasiões e cerejas para
enfeitar as mãos no dia a dia. E também para motivar as conversas que deram
vida nova às palavras que animaram este dia de mercado.
Apesar de tudo fizemos boas compras!
Augusto Mota, texto 68 de «A Geografia do Prazer», 1999
A Geografia do Prazer
O ALBATROZ
Sempre fomos à praia. O mar não estava
calmo e o vento era forte demais para permitir navegação à vela. O sonho de
ontem foi levado pela vazante para longe da rebentação. Assim o veleiro de
verdura deve ter rumado a outras paragens menos agrestes, onde a folhagem das
velas não corresse o risco de antecipar o Outono e ficarem os mastros nus e o
casco à deriva até à próxima Primavera.
No entanto vimos o mar! E as mãos
entenderam o sofrimento dos olhos que moravam longe, longe como as palavras que
não foram ditas, mas apenas adivinhadas. Os olhos devem ter fugido atrás do
veleiro do sonho e arrastaram consigo todas as palavras que costumavam dizer de
nós, do sol, do vento, do mar e do ar. Devem estar agora no outro lado do mundo
à espera de ver o raiar de uma nova madrugada. E as palavras, por certo,
descansam ainda de uma longa e inesperada viagem. Mas quando acordarem
rejuvenescidas hão-de acompanhar uns olhos claros e sorridentes na viagem de
regresso às imagens que digam de nós, do sol, do vento, do mar e do ar. Do ar,
sobretudo. Porque as palavras gostam de voar céleres pelas novas significações
dentro, ou pairar acima das paisagens que rodeiam a cidade onde habitamos os
dias. Onde plantámos árvores. Onde colhemos frutos. E onde aquecemos as mãos e
a saudade.
Dizer do mar é fácil quando as palavras
vêm ao nosso encontro trazidas pelo vento sul e chegam aqui como se fosse o
barulho do mar bravo ecoando, em noite invernosa, sobre as dunas e as corutas
dos pinheiros.
Que dizer do vento? Além de transportar as
palavras que brotam de todas as fontes a sul da cidade, enfuna as velas de
todos barcos que semeamos nos nossos mares interiores, mesmo daqueles que rumam
aos mares quentes do sul e, sempre guiados pelo bom agoiro de algum
albatroz-real, fundeiam em porto da
nossa esperança.
E o sol? Esse aquece a alma e dá sabor aos
frutos. De manhã acorda as flores e as borboletas. Ao meio-dia ajuda-nos a
encontrar o norte. À tardinha parece esculpir as formas que os olhos percorrem
e ilumina o caminho das mãos. Depois esconde-se no mar e entristece as nuvens.
De nós, hoje, as palavras já disseram
tudo!
Augusto Mota, texto 67 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
segunda-feira, 19 de agosto de 2013
A Geografia do Prazer
A ARTE TOPIÁRIA
Os cães descansam a meus pés.
Acompanharam-me durante toda a tarde pelos caminhos da solidão e do trabalho
manual. Ajudaram-me na monda das ervas daninhas e na arte topiária, que sempre
reservo para os fins de tarde quando o sol dá de través nos volumes da Escallonia
macrantha e realça, para as mãos e para os olhos, as formas todas que vamos
talhando a caminho do desejo e do sonho. Gosto, sobretudo, da sensualidade
destes volumes verdes, salpicados de pequenas flores rosa-escuro, intercalados
com a explosão álacre do amarelo da Forsythia intermedia. É neste
contraste de cores quentes e frias que buscamos o alento para a grande travessia das mãos rumo ao sol-posto.
É que, depois de cair a noite, já não há formas para criar e recriar ao som da
música de Bach que enche, agora, todo o espaço entre as palavras aparadas ao
ritmo dos sons. Sons que vêm de baixo, de cima, dos lados, como se só estes
acordes pudessem ser o alimento para o corpo que voa a caminho do nada, sobre
um rio que escorre para norte do território onde, ontem, quisemos plantar o
nosso jardim.
Amanhã iremos à praia e passearemos estes
animais de estimação ao longo do areal na baixa-mar. Iremos, também, até à foz ouvir, na
melodia da água que se despede do rio, os últimos acordes da ‘Suite Orquestral
nº4’ de Bach, que terminou agora mesmo. Com o Husky e o Nikki
vigiaremos a subida da maré da nossa sorte. Talvez o fim da tarde seja mais
propício a darem à costa sensações que venham de longe, do mar alto, para
arribarem ao porto seguro das nossas mãos. Já vejo os cães, excitados, a
pressentirem a aproximação de um veleiro carregado de verdura talhada ao gosto
das emoções que hoje adiámos. É nele que havemos de regressar todos pelo rio
acima e aproveitaremos as águas turvas das últimas chuvadas para pescar enguias à sertela. Serão o nosso alimento enquanto durar a
viagem até à fonte onde nasce o rio e o sonho. Mas fritas e acompanhadas de pão
quente e bem cozido. Pelo caminho havemos, ainda, de plantar flores várias em
ambas as margens para iluminarem as rotas da noite, quando os olhos não
conseguirem esperar pela madrugada e o corpo quiser repetir os prazeres da
memória.
Os cães continuam a descansar a meus pés.
Nem o barulho do aparar das palavras com a tesoura de jardineiro os consegue
acordar.
As palavras, também cansadas, regressam ao
viveiro onde cresceram a nosso gosto.
Augusto Mota, texto 66 de «A Geografia do Prazer», 1999
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